Incompreensão da desinformação

Claire Wardle, cofundadora e codiretora do Information Futures Lab e professora da prática na Brown University School of Public Health

Data da publicação: 

Julho | 2023

    A obsessão em medir a precisão de postagens individuais é equivocada. Para fortalecer os ecossistemas de informação, concentre-se em narrativas e em por que as pessoas compartilham o que fazem.

No outono de 2017, o Collins Dictionary nomeou “fake news” como a palavra do ano.1 Foi difícil contestar a decisão. Os jornalistas estavam usando o termo para aumentar a conscientização sobre informações falsas e enganosas online. Os acadêmicos começaram a publicar copiosamente sobre o assunto e até mesmo a batizar conferências com seu nome.2 E, claro, o presidente dos EUA, Donald Trump, usava regularmente o epíteto no pódio para desacreditar quase tudo de que não gostava.3

Na primavera daquele ano, eu já estava exasperada com a forma como esse termo estava sendo usado para atacar a mídia. O que é pior, o termo nunca refletiu de fato o real problema: a maior parte do conteúdo taxado de “fake news” não era notícia falsa, mas sim conteúdo verdadeiro usado fora de contexto – e muito raramente aparentava de fato ser uma notícia. Eu fiz um apelo para que se parasse de usar a expressão “fake news” e, em vez disso, que se passasse a usar as expressões “informação errada”, “desinformação” e “desinformação maliciosa” sob o conceito guarda-chuva “transtorno da informação”.4 5 Esses termos, especialmente os dois primeiros, passaram a ser bastante adotados - mas representam uma estrutura excessivamente simplificada e arrumadinha que eu já não considero útil.

Tanto “desinformação” quanto “informação errada” descrevem afirmações mentirosas ou enganosas, mas a desinformação é distribuída com a intenção de causar danos, enquanto a informação errada é o compartilhamento equivocado da informação enganosa. As análises de ambos os tipos de conteúdo geralmente se concentram em saber se uma postagem é precisa e se tem a intenção de enganar. O resultado? Nós, pesquisadores, ficamos tão obcecados em rotular os pontos que não conseguimos ver o padrão maior que eles revelam.

Ao se concentrar estritamente no conteúdo problemático, os pesquisadores falham em compreender o número cada vez maior de pessoas que criam e compartilham esse tipo de conteúdo e também negligenciam a análise do contexto mais amplo, de quais informações as pessoas realmente precisam. Os acadêmicos não vão fortalecer efetivamente o ecossistema informacional até que mudemos nossa perspectiva - passando da classificação de cada postagem à compreensão dos contextos sociais dessas informações, de como elas se encaixam em narrativas e identidades e quais seus impactos de curto prazo e danos de longo prazo.

O que está ficando de fora

Para entender o que esses termos deixam de fora, consideremos “Lynda”, uma pessoa fictícia baseada nas muitas que acompanho online. Lynda acredita veementemente que as vacinas são perigosas. Ela vasculha bancos de dados em busca de pesquisas científicas recém-publicadas, acompanha audiências regulatórias para aprovações de vacinas, lê bulas de vacinas para analisar ingredientes e advertências. Em seguida, ela compartilha o que aprendeu com sua comunidade online.

Ela é uma divulgadora de informação falsa? Não. Ela não está compartilhando por engano informações que não se preocupou em verificar. Ela dedica tempo para buscar informações.

Ela também não é uma agente de desinformação, como comumente definido. Ela não está tentando causar danos ou ficar rica. Minha sensação é que Lynda é motivada a postar porque sente uma necessidade irresistível de alertar as pessoas sobre um sistema de saúde que ela acredita sinceramente que a prejudicou ou prejudicou a um ente querido. Ela está escolhendo informações estrategicamente para se conectar com as pessoas e promover uma visão de mundo. Seus critérios para escolher o que postar dependem menos de fazer sentido racionalmente e mais de suas identidades sociais e afinidades.

Desconsiderar Lynda por sua interpretação seletiva e falta de credenciais de pesquisa gera o risco de não percebermos o que ela está conseguindo fazer: coletar trechos de conteúdo ou clipes que apoiam seus sistemas de crenças de informações, publicadas por instituições autorizadas (o que pode ser apenas uma fala de um cientista admitindo que mais pesquisas [sobre vacinas] são necessárias, ou uma advertência sobre efeitos colaterais conhecidos) e compartilhar isso sem oferecer qualquer contexto ou explicação mais ampla. Essa informação “precisa” que ela descobriu por meio de sua própria pesquisa é usada para apoiar narrativas imprecisas – como por exemplo que os governos estejam lançando vacinas para controle populacional, ou que os médicos estejam sendo enganados ou vendidos às empresas farmacêuticas.

Para entender o ecossistema de informação contemporâneo, os pesquisadores precisam se afastar da fixação na precisão do detalhe e ampliar a percepção para entender as características de alguns desses espaços online que são alimentados pela necessidade das pessoas por conexão, comunidade e afirmação. Como escreveu a estudiosa da comunicação Alice Marwick , “Nos ambientes sociais, as pessoas não estão necessariamente procurando informar os outros: elas compartilham histórias (e fotos e vídeos) para se expressar e divulgar sua identidade, afiliações, valores e normas”.6 Essa motivação pode aplicar-se aos fãs dos Beatles, bem como aos amantes de gatos, ativistas pela justiça social ou promotores de várias teorias da conspiração.

Pesquisa isolada

O mundo online de Lynda aponta para outra coisa que os rótulos “informação errada” e “desinformação" não conseguem capturar: conexões. Embora Lynda possa postar principalmente em grupos anti-vacinas no Facebook, se eu seguir suas atividades, é muito provável que também a encontre postando em #stopthesteal7 ou grupos semelhantes e compartilhando no Instagram memes de negação das mudanças climáticas ou teorias da conspiração sobre o último tiroteio em massa8. Mas isso é um grande “se”; ninguém espera que eu, como pesquisadora, faça perguntas tão amplas.

Um dos desafios de estudar essa arena é o fato de que manter um foco estreito faz com que o papel das Lyndas do mundo seja mal compreendido. Um crescente conjunto de pesquisas aponta para o volume de conteúdo on-line problemático que pode ser rastreado até um número surpreendentemente pequeno9 dos chamados superespalhadores10 - mas até agora, mesmo esse trabalho estuda apenas aqueles que amplificam o conteúdo11 dentro de um determinado tópico, e não aqueles que criam os conteúdos – o que faz com que os impactos de verdadeiros crentes devotados como Lynda ainda sejam pouco estudados.

Isso reflete um problema maior. Aqueles de nós que são financiados para rastrear informações danosas on-line muitas vezes trabalham em silos. Trabalho em uma escola de saúde pública, então as pessoas acham que eu deveria apenas estudar a desinformação sobre saúde. Meus colegas nos departamentos de ciência política são financiados para investigar o discurso que pode corroer a democracia. Eu suspeito que pessoas como Lynda navegam sobre uma quantidade enorme de conteúdo problemático de amplo alcance, mas elas não operam da maneira que nós, acadêmicos, somos configurados para pensar sobre nossos sistemas de informação falhos.

Todos os meses, há conferências acadêmicas e políticas focadas em desinformação sobre saúde, desinformação política, comunicação climática ou desinformação vinda da Rússia ou da Ucrânia. Freqüentemente, cada um destes eventos tem especialistas muito diferentes falando sobre problemas idênticos com pouca consciência da produção de conhecimento de outras disciplinas. Agências de financiamento e formuladores de políticas criam inadvertidamente ainda mais silos ao se concentrarem em nações ou regiões distintas, como a União Europeia.

Eventos e incidentes também se tornam silos. Os financiadores se concentram em eventos datados, de alto nível, como uma eleição, o lançamento de uma nova vacina ou a próxima conferência das Nações Unidas sobre mudanças climáticas. Mas aqueles que tentam manipular, monetizar, recrutar ou inspirar pessoas se destacam em explorar momentos de tensão ou indignação, quer seja o último documentário sobre a realeza britânica, um julgamento de divórcio de uma celebridade ou a Copa do Mundo. Ninguém financia investigações sobre a atividade online que esses momentos geram, embora isso possa trazer informações cruciais.

As respostas das autoridades também são isoladas. Em novembro de 2020, minha equipe publicou um relatório sobre 20 milhões de postagens que coletamos no Instagram, Twitter e Facebook, incluindo conversas sobre as vacinas COVID-19.12 (Observe que não pretendíamos coletar postagens contendo desinformação; simplesmente queríamos saber como as pessoas estavam falando sobre as vacinas.) A partir desse grande conjunto de dados, a equipe identificou várias narrativas importantes, incluindo segurança, eficácia e necessidade de se vacinar e os motivos políticos e econômicos para produzir a vacina. Mas a conversa mais frequente sobre vacinas nas três plataformas foi uma narrativa que rotulamos de “liberdade e autonomia”. As pessoas eram pouco propensas a discutir a segurança das vacinas e muito mais propensas a discutir sobre a obrigação de vacinar-se ou apresentar comprovante de vacinação. No entanto, agências como os Centros de Controle e Prevenção de Doenças dos EUA estão preparadas apenas para tratar da narrativa única sobre segurança, eficácia e necessidade.

Não “átomos”, mas narrativas e redes

Infelizmente, a maioria dos estudiosos que estudam e respondem a informações poluídas ainda pensa em termos do que chamo de átomos de conteúdo, e não em termos de narrativas. As plataformas de mídia social têm equipes que tomam decisões sobre se uma postagem individual deve ser verificada, rotulada, rebaixada ou removida. As plataformas tornaram-se cada vez mais hábeis em praticar arbitrariedades com postagens que podem nem mesmo violar suas diretrizes. Mas, ao se concentrar em postagens individuais, os pesquisadores não conseguem ver o quadro geral: as pessoas não são influenciadas por uma postagem tanto quanto pelas narrativas nas quais essa postagem se encaixa.

Nesse sentido, postagens individuais não são átomos, mas algo como gotas de água. É improvável que uma gota d’água persuada ou prejudique, mas, com o tempo, a repetição começa a se consolidar em narrativas abrangentes – muitas vezes, narrativas que já estão alinhadas com o pensamento das pessoas. O que acontece com a confiança do público quando as pessoas veem repetidamente, ao longo de meses e meses, postagens que “estão apenas fazendo perguntas” sobre instituições governamentais ou organizações de saúde pública? Como gotas de água em pedra, uma gota não fará mal, mas com o tempo os sulcos podem ser profundos.

O que fazer?

Nos últimos anos, tem sido muito mais fácil culpar os trolls russos no Facebook ou os adolescentes no 4chan do que reconhecer como aqueles atores encarregados de fornecer informações claras e úteis para atender às necessidades das comunidades falharam sistematicamente em fazê-lo. Os maus atores que estão tentando manipular, dividir e semear o caos se aproveitaram desses vácuos. Nesse espaço confuso, instituições confiáveis não têm atuado à altura do desafio.

Para realmente avançar, os defensores de ecossistemas saudáveis de informação precisam de uma visão mais ampla e integrada de como e por que as informações circulam:

Organizar e financiar pesquisas transversais: aqueles que desejam promover ecossistemas de informação saudáveis devem aprender a avaliar fluxos de conteúdo multilíngues e em rede que ultrapassem os limites convencionais de disciplinas e regiões. Eu presidi uma força-tarefa que propunha uma instituição global permanente para monitorar e estudar informações, que seria financiada centralmente e, portanto, independente tanto de países quanto de empresas de tecnologia.13No momento, os esforços para monitorar a desinformação geralmente fazem um trabalho sobreposto, mas falham em compartilhar dados e mecanismos de classificação e têm capacidade limitada de responder em uma situação de crise.

Aprender a participar: o ecossistema de informações poluídas é participativo -- um local de experimentação constante, uma vez que os participantes impulsionam engajamento e se conectam melhor com as preocupações de seu público. Embora os meios de comunicação e as agências governamentais pareçam adotar as mídias sociais, eles raramente usam os recursos interativos bidirecionais que caracterizam a Web 2.0. A comunicação científica tradicional ainda é feita de cima para baixo, com base no modelo paternalista de déficit, que presume que os especialistas sabem quais informações fornecer, e que o público consumirá passivamente as informações e responderá conforme o esperado. Esses sistemas têm muito a aprender com pessoas como Lynda sobre como se conectar com o público, em vez de fazer apresentações para ele. Um primeiro passo essencial é treinar as equipes de comunicação do governo, de organizações comunitárias, bibliotecários e jornalistas para pesquisar e ouvir as perguntas e preocupações do público.

Apoie a resiliência liderada pelas comunidades: Hoje, os financiadores globais e nacionais têm um foco exagerado em plataformas, filtros e regulamentação – ou seja, em como eliminar as “coisas ruins” em vez de como expandir as “coisas boas”. Em vez de prosseguir com esses esforços ineficazes, os principais financiadores deveriam encontrar uma maneira de apoiar respostas específicas e baseadas em contextos locais que dialoguem com o que as comunidades precisam. Por exemplo, o pesquisador de saúde Stephen Thomas criou a campanha Health Advocates In-Reach and Research (HAIR)14que treina proprietários de barbearias e salões de beleza locais para ouvir seus clientes sobre problemas de saúde e, em seguida, fornecer conselhos e direcionar as pessoas aos recursos apropriados para acompanhamento e cuidados. Outro exemplo: depois de avaliar as necessidades de informação da comunidade local de língua espanhola em Oakland, Califórnia, e descobri-la terrivelmente mal atendida, a jornalista Madeleine Bair fundou o site participativo de notícias on-line El Tímpano em 2018.15

Campanhas educacionais direcionadas com análise do ciclo de vida [NdT: da informação]: Estas também podem ajudar as pessoas a aprender a navegar em sistemas de informação poluídos. Ensinar às pessoas técnicas como o método SIFT (que descreve as etapas para avaliar fontes e rastrear reivindicações em seu contexto original)16 e leitura lateral (que ensina como verificar informações enquanto as consome)17 tem se mostrado eficaz, assim como programas para equipar as pessoas com habilidades para entender como suas emoções são direcionadas e outras técnicas usadas por manipuladores.18

Para cada uma dessas tarefas, as pessoas e entidades que desejam promover ecossistemas de informação saudáveis devem se comprometer com o longo prazo. A melhoria real será um processo de décadas, e muito disso será gasto tentando recuperar o atraso em um cenário tecnológico que se transforma a cada poucos meses, com disrupções como o ChatGPT surgindo aparentemente da noite para o dia. A única maneira de fazer avanços é olhar para além dos diagramas organizados e das tipologias organizadas de desinformação para ver o que realmente está acontecendo - e criar uma resposta não para o sistema de informação em si, mas para os humanos que operam nele.

(*) Wardle, Claire. “Incompreensão da desinformação.” Questões de Ciência e Tecnologia 39, no. 3 (primavera de 2023): 38–40. https://doi.org/10.58875/ZAUD1691

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1. Ver https://blog.collinsdictionary.com/language-lovers/collins-2017-word-of-...
2. Ver https://firstmonday.org/ojs/index.php/fm/article/view/11645/10152
3. Ver https://www.nytimes.com/video/us/politics/100000004865825/trump-calls-cn...
4. Ver https://rm.coe.int/information-disorder-report-version-august-2018/16808...
5. NT: Utilizamos os termos em português com base na tese de doutorado de Tatiana Dourado. Ver https://www.researchgate.net/publication/342082587_Fake_news_na_eleicao_...
6. Ver https://georgetownlawtechreview.org/wp-content/uploads/2018/07/2.2-Marwi...
7. NT: Movimento de desinformação criado pelo operador político republicano Roger Stone em 2016, em antecipação a possíveis perdas eleitorais futuras que poderiam ser retratadas como roubadas por suposta fraude. Ver em https://en.wikipedia.org/wiki/Attempts_to_overturn_the_2020_United_State...
8. Ver https://www.nytimes.com/2021/03/26/us/far-right-extremism-anti-vaccine.html
9. Ver https://counterhate.com/research/the-disinformation-dozen/
10. Ver https://arxiv.org/pdf/2207.09524.pdf
11. Ver https://dl.acm.org/doi/10.1145/3577213
12. Ver https://firstdraftnews.org/long-form-article/under-the-surface-covid-19-...
13. Ver https://edmo.eu/2022/06/29/10-recommendations-by-the-taskforce-on-disinf...
14. Ver https://sph.umd.edu/hair
15. Ver https://internews.org/resource/mas-informacion/
16. Ver SIFT (The Four Moves), https://hapgood.us/2019/06/19/sift-the-four-moves/
17. Ver https://www.cip.uw.edu/2021/12/07/lateral-reading-canada-civix-study/
18. https://theconversation.com/inoculation-theory-using-misinformation-to-f...

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