Agricultura digital: uma nova fronteira para os direitos de dados

Philip Seufert

Data da publicação: 

Janeiro 2024

    São urgentemente necessários marcos de governança baseados nos direitos humanos para evitar a exploração baseada em dados, o que agravará as desigualdades na alimentação e na agricultura.1

Numa manhã de 2019, os residentes de Naya Toli, uma aldeia no leste da Índia, acordaram e descobriram que tinham ficado sem terra durante a noite.2 Desta vez, não foram escavadeiras ou gangues armadas que os expulsaram de suas terras, mas sim um programa do governo estadual para digitalizar registros de propriedades. O novo registro digital atribuiu 108 hectares de sua área ao proprietário anterior, que vendeu o terreno para 19 famílias em 1973.

O que pode parecer uma simples falha técnica revela um problema fundamental com a rápida implantação de tecnologias digitais: corre o risco de consolidar a exclusão existente e aumentar as desigualdades.

Desequilíbrios de poder incorporados nas tecnologias digitais

A promessa que tantas vezes ouvimos sobre o futuro da alimentação é que as tecnologias digitais tornarão os sistemas alimentares mais produtivos, sustentáveis e eficientes, ao mesmo tempo que ajudarão a enfrentar o aumento da fome no mundo.3 Na realidade, a digitalização da agricultura beneficiará principalmente as grandes empresas,4 enquanto os pequenos produtores de alimentos, os povos indígenas e outros grupos marginalizados correm o risco de perder. Os pequenos agricultores temem que os seus dados sejam extraídos e utilizados sem o seu consentimento para criar produtos e serviços que lhes serão vendidos com fins lucrativos, aumentando a sua dependência de agentes externos e enchendo os bolsos das grandes empresas.5 Afinal, existem enormes desequilíbrios de poder entre as comunidades rurais e os conglomerados tecnológicos multinacionais.6

O governo indiano começou a digitalizar registros fundiários na década de 1990 e lançou o seu ambicioso Programa de Modernização dos Registros Terrestres Digitais Indianos (DILRMP) em 2008.7 Em 2019, o estado de Jharkhand tinha digitalizado mais de 99% dos seus registros fundiários.8 No entanto, com apenas 2,3% das terras levantadas fisicamente em processo acelerado, os direitos e reivindicações fundiárias de muitas comunidades, como as de Naya Toli, desapareceram dos registros recentemente digitalizados. Quando os aldeões tentaram pagar os seus impostos sobre a terra, as autoridades recusaram, alegando que não podiam pagar impostos sobre terras que não possuíam, de acordo com os registros do DILRMP. Desde então, os moradores têm tentado, com muita dificuldade, corrigir as informações cadastrais.

Experiências semelhantes são relatadas por comunidades em toda a Índia, especialmente pequenos agricultores e povos indígenas, que têm reivindicações tradicionais sobre terras comuns ou formas coletivas de propriedade de terras.9 Os novos registros digitais revelaram-se incapazes de documentar a diversidade dos tipos de posse, prejudicando ainda mais os grupos marginalizados. As comunidades indígenas não estão sozinhas: do Brasil a Ruanda e da Geórgia à Indonésia, as pessoas enfrentam desafios semelhantes.10

As armadilhas da "agricultura digital”

A digitalização dos registros fundiários faz parte de uma transformação rápida e abrangente dos sistemas alimentares, por vezes chamada de agricultura digital”.11 O governo indiano anunciou em 2021 que os registros fundiários recentemente digitalizados seriam incluídos no Agri Stack, um intercâmbio de dados apoiado pelo governo que permite a integração de dados fundiários com perfis de agricultores e outros dados agrícolas de origem não humana (meteorologia, saúde do solo, hidrologia etc.).12 O objetivo declarado é criar um conjunto de dados agregados para criar produtos e serviços personalizados para os agricultores.

Mas, tal como em outros setores da economia, está em curso uma corrida por dados rentáveis e por tecnologias de armazenagem e processamento de dados, incluindo a inteligência artificial. Nos últimos anos, várias das principais empresas agroalimentares do mundo fizeram parcerias com grandes empresas tecnológicas como a Alphabet, a Microsoft e a Amazon.13 Estas fornecem a infraestrutura técnica, como sistemas baseados em nuvem e inteligência artificial, que sustentam uma série de novas aplicações e serviços que as agroindústrias vendem aos agricultores. Na Índia, os protestos em massa dos agricultores desafiaram as novas leis agrícolas aprovadas pelo Parlamento em Setembro de 2020, que abriram o setor agrícola do país às empresas.14 As novas leis coincidiram com o lançamento do Agri Stack, reforçando os receios dos agricultores relativamente a uma nova onda de apropriação de terras baseada em dados.

Digitalização justa

Duas lições importantes podem ser extraidas das experiências das comunidades na Índia e em outros países. Em primeiro lugar, o desenvolvimento e a utilização de tecnologias digitais estão firmemente enraizados num contexto socioeconômico específico. A tecnologia não se desenvolve numa bolha, mas é determinada pelo dinheiro e pelo poder, ambos altamente concentrados em algumas grandes empresas. Em segundo lugar, as implicações da digitalização vão além da proteção de dados e da privacidade. Mais especificamente, a digitalização afeta a equidade e a distribuição de recursos e riqueza.15 Deve ser moldada de forma proativa para tornar as nossas sociedades mais justas, em vez de reproduzir padrões de exclusão e discriminação. Há uma necessidade urgente de marcos de governança robustos baseados nos direitos humanos que estabeleçam princípios e padrões para a utilização de tecnologias digitais no contexto da alimentação e da agricultura.16

Os governos e as Nações Unidas parecem estar finalmente à altura deste desafio. O Conselho de Direitos Humanos da ONU17 adotou recentemente uma resolução sobre novas e emergentes tecnologias digitais e direitos humanos”.18 Ao mesmo tempo que destaca o potencial destas tecnologias, a resolução também reconhece os riscos que podem representar para os direitos humanos, incluindo os direitos econômicos, sociais e culturais de grupos marginalizados, como os povos indígenas e as pessoas que vivem em zonas rurais. Além disso, apela aos Estados para que estabeleçam marcos de governança para prevenir, mitigar e remediar os efeitos adversos das tecnologias digitais sobre os direitos humanos, incluindo a regulamentação das atividades das empresas tecnológicas.

O Comitê das Nações Unidas para a Segurança Alimentar Mundial também aprovou recentemente uma série de recomendações políticas sobre a armazenagem e utilização de dados no contexto da segurança alimentar e nutricional.19 Este documento inclui a primeira tentativa formal de descrever como os dados e as tecnologias relacionadas estão afetando os sistemas alimentares e de propor orientações sobre como gerir as oportunidades e riscos associados. É importante ressaltar que as recomendações, que serão adotadas em outubro de 2023, reconhecem os agricultores, os povos indígenas e outros pequenos produtores de alimentos como detentores de direitos sobre os seus dados e conhecimentos relacionados, com direito a uma participação equitativa em quaisquer benefícios gerados a partir desses dados.

Resta saber se estas iniciativas globais ajudarão a moldar o emprego de tecnologias digitais na alimentação e na agricultura de uma forma que apoie os direitos humanos. No entanto, demonstram claramente que as questões levantadas pela digitalização são inerentemente políticas. Não podemos deixar que técnicos e empresas determinem o futuro das nossas sociedades.

Tal como se viu com as mobilizações maciças de agricultores na Índia, as organizações de produtores alimentares estão apresentando uma visão alternativa em que as tecnologias estão a serviço das pessoas e do planeta, e não dos interesses financeiros.

1 Texto traduzido e adaptado do original em espanhol em https://www.openglobalrights.org/digital-agriculture-new-frontier-data-r..., 22 de setembro de 2023.

9 https://itforchange.net/sites/default/files/2224/ITFC_Recasting Land Tenure Rights in the Data Epoch.pdf

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