Direito ao esquecimento - possibilidades e limites na Internet

Por Kelli Priscila Angelini Neves, advogada e Mestre em Direito Civil pela PUC de São Paulo

Por Diego Sígoli Domingues, advogado, posgraduado em Direito Processual Civil pela Universidade Nove de Julho

Data da publicação: 

Dezembro de 2014

Não se nega que a Internet é um dos avanços mais significativos do último século e, devido a sua especificidade de existir em um espaço incomensurável, livre de fronteiras, com capacidade desmedida de armazenamento digital, tendo tudo a uma velocidade sem igual e com baixo investimento, trouxe a facilitação do acesso e disseminação de informações.

No passado quem desejasse manter o anonimato poderia não permitir que seu nome e número de telefone constasse das páginas amarelas do catálogo telefônico. Ao longo do tempo, esse cenário transformou-se radicalmente. Parte dos usuários da Internet saltaram do desejo do anonimato para a mania de exibicionismo, alimentando a rede com cada vez mais e mais informações, especialmente pessoais, aguçando, por consequência, a vontade de aceder a informações a qualquer momento e sobre qualquer pessoa, na busca insana de saber, vasculhar, lembrar. Não durou muito para que essa ambição por saber, vasculhar e lembrar, trouxesse a posterior vontade de tornar indisponível, apagar, desaparecer, esquecer.

Daí, somente agora depois de tanta exposição, paramos para refletir: O conteúdo inserido na rede seria então inapagável? Inesquecível? Haveria o direito do cidadão inibir informação referente a fato ocorrido em determinada época de sua vida, ainda que verdadeiro, impedindo que seja rememorado? Ressurge, então, a polêmica sobre existir ou não a possibilidade de impedir que atos passados sejam revividos, eternizados: o pretenso direito ao esquecimento.

Contrário ao que parece, o direito ao esquecimento não é um entusiasmo moderno fruto da Internet. Advém, por herança, de casos antigos divulgados na mídia em geral, especialmente na impressa e televisiva. Há muito já se pleiteou, por exemplo, não permitir a reabertura de antigas feridas ao reavivar na televisão ou em revistas informações de prisioneiros ou pessoas envolvidas em crimes anos depois do cumprimento da pena ou da absolvição destes. Assim, o direito ao esquecimento tem sua origem histórica no campo das condenações criminais; contudo, ganhou novo rumo e novos campos ao longo dos anos, principalmente com a expansão da Internet, em que usuários optaram por sair do anonimato e passaram a se expor com muita frequência.

Porém, apesar de independer do meio de comunicação em que a informação é vinculada, não se nega que devido a tecnicalidades específicas da Internet, o desejo ao esquecimento adquiriu matizes mais complicados.

A atual polemização do direito ao esquecimento deve-se em parte, por se referenciar, de um lado, na possível falta de limites do superinformacionismo1 (em razão de ter sido tolhido o processo biologicamente comum de esquecimento2 pelas mídias eletrônicas, ferindo suposto direito fundamental do cidadão) e, de outro, por se exaltar o esquecimento, em confronto com o direito da coletividade à informação, da proteção à privacidade e à liberdade de expressão.

Dúvidas surgem!

Não levar em conta o direito ao esquecimento estaria aumentando a pena de um condenado, além daquela em que o sujeito permanece na prisão? Os erros do passado no mundo virtual assombrariam para sempre nosso futuro na vida real, impondo obstáculos para uma segunda chance por aquele que cometeu um delito? Impedindo a pessoa de mudar ao longo da vida, amarrando sua história pessoal a um determinado fato e acorrentando-a ao seu passado?

Por outro lado, efetivar juridicamente o direito ao esquecimento traria um limite temporal (prazo de validade) para se manter informações sobre alguém? Suprir uma informação da rede violaria o princípio da publicidade, criando meios de censura? Ou ainda, é possível a harmonia entre o direito ao esquecimento e a liberdade de expressão e informação, com vistas a garantir o exercício pleno de ambos os direitos?

Neste embate entre direitos fundamentais – direito individual à privacidade e intimidade em face do interesse coletivo a liberdade de expressão e informação – sem ponto pacífico, um caso emblemático acendeu a chama de um debate importantíssimo sobre o direito ao esquecimento nas Cortes Européias em 2009. Dois irmãos condenados por homicídio na década de 90 pleitearam perante o Tribunal de Hamburgo o direito de obter ordem judicial para suprimir todas as referências aos seus nomes do sítio Wikipedia, fundamentando o pedido no fato de que, após mais de 20 anos de condenação e já em liberdade, não havia motivos para se manter tais informações na Internet. A Corte Alemã acatou a tese dos condenados e acolheu o pedido.3

Um outro caso real acabou voltando os olhos do mundo para o direito ao esquecimento e impulsionou a Comissão Européia a propor uma reforma global para endurecer as regras sobre a proteção de dados pessoais. O estudante Max Schrems, baseando-se em lei européia, solicitou ao Facebook que fornecesse acesso a todas as informações relacionadas a sua pessoa. Para seu espanto, recebeu um CD com mais de mil documentos que incluíam conversas em salas de bate-papo, fotos, pedidos de amizade em sítios de relacionamento, eventos participados e atualização de status de seu perfil, a maioria que já havia sido, supostamente, apagada pelo estudante tempos atrás.4

Isso motivou a Comissão Européia a apresentar uma proposta para enrijecer ainda mais a proteção de dados pessoais, já garantida aos cidadãos europeus em decorrência do Regulamento 95/46/CE relativo à proteção de dados pessoais e a esclarecer a viabilidade do direito ao esquecimento. A Comissão Européia, partindo do princípio que a proteção de dados pessoais é um direito fundamental de todos, ressalta que há o “direito de as pessoas impedirem a continuação do tratamento dos respectivos dados e de os mesmos serem apagados, quando deixarem de ser necessários para fins legítimos”.5 Um dos objetivos da Comissão Européia é criar o direito a ser esquecido na Internet, permitindo apagar definitivamente fotografias e comentários, desde que não existam motivos legítimos para a sua manutenção,6 impondo, assim, limites em relação ao tempo que os sítios e redes sociais podem armazenar informações dos usuários.

Não tardou muito para que um outro caso motivasse a mais alta Corte Européia a decidir pela remoção de links dos resultados de buscas do Google relacionados a um advogado espanhol. Em maio deste ano, o Tribunal europeu acolheu o pedido do advogado para obrigar o Google a publicar nos seus resultados de busca a matéria do jornal La Vanguardia de 1998 sobre uma dívida e penhora de um imóvel já quitados.

Ao acolher o pedido do cidadão espanhol, a Corte Européia validou para todos os cidadãos europeus o direito de requerer ao Google a remoção de páginas que remetam a suas informações pessoais consideradas inadequadas, irrelevantes ou excessivas. Isso fez a empresa norte-americana disponibilizar um formulário a ser preenchido por qualquer usuário europeu para que usuários requeiram a remoção de links do motor de busca do Google, ficando a cargo da empresa avaliar cada pedido individualmente.

As consequências dessa decisão foram tais que em menos de quinze dias após a mesma o Google já havia recebido mais de 12 mil pedidos de europeus para ter seus dados apagados da Internet,7 o que demonstra a amplitude da discussão.

A medida levou à discussão acerca do assunto, trazendo, de um lado, a posição desfavorável à Corte Européia sob o fundamento de que tal decisão seria inconstitucional por violar a liberdade de expressão, imprensa e comunicação, já que não se pode apagar a história de uma pessoa e os resultados de buscas seriam mera conseqüência dos atos delas. O Google apoiando essa ideia alega que o buscador apenas “indexa” conteúdo relevante, sendo que notícias mais populares acabam por aparecer no topo dos resultados de busca e são mais visualizadas, sugerindo que o ideal é remover a ofensa e não alterar os resultados das buscas. De outro lado, apoiando a decisão da Corte, defende-se que a liberdade de expressão não pode violar direitos de personalidade e de privacidade, colocando em risco a integridade das pessoas, já que todos teriam o direito de exigir que os seus dados deixem de ser tratados e que sejam apagados se já não forem necessários para fins legítimos.8

Por sua vez, o direito ao esquecimento da pessoa pública ou notória ganha contornos diferentes do cidadão comum, do homem médio, vez que como decidido pelo Tribunal de Justiça da União Européia, em relação à tais pessoas o fato a qual se busca o esquecimento “não poderia ocorrer sem maiores indagações, pois, ao contrário das pessoas singulares, suas atuações produzem interesse no grande público. Nesse caso, o direito à preservação da vida privada cederia passo ao preponderante interesse geral em ter acesso a tais informações”.9

Nos Estados Unidos, o direito ao esquecimento está relacionado ao direito à privacidade, o direito de ser deixado em paz (the right to be let alone) e, muito embora a liberdade de expressão seja fortemente protegida, mesmo com algumas críticas sobre a sua aplicação10, as autoridades trataram de garantir a privacidade e intimidade dos usuários da rede. Neste sentido, recentemente, os Estados Unidos aprovaram a chamada “lei do apagador”, que obriga os sítios de redes sociais a garantir aos menores de idade uma forma de apagar suas próprias postagens quando se arrependem do que fizeram.11

Fora do ambiente virtual, outro caso emblemático sobre o direito ao esquecimento nos Estados Unidos envolveu uma cidadã que morreu lutando pelo esquecimento do seu passado, notadamente quanto à sua participação em um filme erótico feito na adolescência. Mesmo mudando-se para uma cidade menor e modificando seu estilo de vida, a atriz ainda era procurada pela imprensa.12

O direito ao esquecimento já foi negado e reconhecido em diversos países e ainda não há ponto pacífico. Mundialmente, a matéria ressurgiu e ganhou maiores contornos após a citada decisão do tribunal europeu. Continua acesa a discussão que põe em confronto o direito à privacidade e à liberdade de expressão e comunicação.

O Brasil não está fora dessa discussão. Aqui já se tratou bastante do tema e também não há nada consensuado. A discussão do esquecimento no país começou há muito com um caso não relacionado à Internet ocorrido na década de 70, onde um cidadão assassinou uma socialite e cumpriu sete anos de prisão em regime fechado, quanto obteve a condicional. Em 2003, uma das mais famosas emissoras de TV do país resolveu exibir uma reportagem dedicada a contar a história da socialite e consequentemente do crime. O condenado pleiteou na Justiça que se impedisse a exibição do programa; porém, o Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro reconheceu que a liberdade de expressão da emissora deveria ser garantida, já que o programa se limitaria a contar a história do ocorrido.13

Em meados de 2013, um caso envolvendo o tema, também fora do âmbito da Internet, foi apreciado pelo Superior Tribunal de Justiça brasileiro, em que se pleiteava o reconhecimento de dano moral por ter ocorrido a exibição não autorizada de imagem em programa policial televisivo ocorrido há longo tempo, com ostensiva identificação da pessoa que foi investigada e posteriormente inocentada. A Corte Brasileira, agora defendendo o direito ao esquecimento, entendeu haver violação ao direito de ser esquecido e condenou a emissora a pagar indenização.14

Casos relacionados ao direito ao esquecimento na Internet já foram julgados em nossas Cortes e um dos mais emblemáticos foi apreciado pelo Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, em ação em que uma pessoa submetida a concurso público foi acusada de “colar” em uma das provas, e a suspeita de fraude em concurso público acabou ganhando as páginas dos jornais e ampla divulgação na Internet. Anos após, a candidata envolvida notou que ao digitar seu nome nos buscadores na Internet os resultados listados eram da suposta fraude no concurso. Pleiteou em ação judicial a supressão da notícia no mundo virtual e a instalação de filtros para que o assunto não mais voltasse aos sítios de busca. O Tribunal entendeu que: “na hipótese concreta do conflito entre a garantia à intimidade e a chamada sociedade da informação, deve prevalecer a primeira, com vista a evitar que o exercício da livre circulação de fatos noticiosos por tempo imoderado possa gerar danos à vida privada do indivíduo. Prevalece nessa fase, do direito à imagem, à personalidade e do direito ao esquecimento, garantias fundamentais do ser humano”.15

Além desse, outro caso de grande repercussão relacionado ao direito ao esquecimento na Internet envolveu uma famosa apresentadora que moveu ação contra o Google, para inibir que os indexadores de busca da empresa apresentassem resultados que atrelavam seu nome a pedofilia ou a prática criminosa qualquer. Na ocasião, o Superior Tribunal de Justiça, além de entender o pedido inócuo, “pelo fato de que eventual restrição não alcançaria os provedores de pesquisa localizados em outros países, através dos quais também é possível realizar as mesmas buscas, obtendo resultados semelhantes”, optou por negar o direito ao esquecimento com vistas a assegurar o direito à informação, ao interesse coletivo.16

O direito ao esquecimento também foi tratado em um Enunciado (n.531) da VI Jornada de Direito Civil do Conselho da Justiça Federal, preconizando que “a tutela da dignidade da pessoa humana na sociedade da informação inclui o direito ao esquecimento”. A justificativa para esse Enunciado foi que “os danos provocados pelas novas tecnologias de informação vêm-se acumulando nos dias atuais e não se atribui a ninguém o direito de apagar fatos ou reescrever a própria história, mas apenas assegura a possibilidade de discutir o uso que é dado aos fatos pretéritos, mais especificamente o modo e a finalidade com que são lembrados”.17

Ainda nesta seara das demandas judiciais, diante da discussão mundial sobre a possibilidade do cidadão deter o controle de suas próprias informações, despertada pela decisão da Corte Européia, certo é que ainda não estão consolidados os limites de responsabilidade e a eventual contribuição que as empresas que exploram a atividade comercial de motores de busca, armazenamento de dados e informações possam dar para a efetivação do direito ao esquecimento, merecendo melhores reflexões e discussões por parte da sociedade.

Conclui-se que na Internet, diferentemente de jornais, revistas ou programas televisivos, informações pretéritas vem à tona como se fossem recentes. É preciso portanto pesar, de um lado, o direito a todos de ter acesso a informações e relembrar fatos antigos, e de outro, o direito do indivíduo de, em casos excepcionais, impedir que dados ou informações antigas continuem publicadas na atualidade18. A ponderação de cada caso nem sempre acolherá o direito ao esquecimento. A solução aqui não é simples, e ainda há muito o que se debater.

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1. Antonio Rulli Júnior. “Direito ao esquecimento e o superinformacionismo”. RIDB, Ano I, nº 1. 2012. P. 421.

2. Erik Noleta Kirk Palma Lima. “Direito ao esquecimento. Discussão européia e sua repercussão no Brasil”. RIL – Revista de Informação Legislativa nº 199. Brasília. Junho-setembro/2013. P. 273.

3. Erik Noleta Kirk Palma Lima. Ibid. P. 275.

4. Maria Eduarda Gonçalvez et al. Implicações jurídicas das redes sociais na Internet: um novo conceito de privacidade?. Fonte: http://www.fd.unl.pt/docentes_docs/ma/meg_ma_15739.pdf – acesso em 13/06/2014.

5. Erik Noleta Kirk Palma Lima. Ibid. P. 274.

6. Maria Eduarda Gonçalvez et al. Ibid.

7. Fonte: http://fernandafav.jusbrasil.com.br/noticias/121548903/google-recebe-12-... – acesso em 12/06/2014.

8. José Antonio Milagre. As duas faces do direito ao esquecimento na Internet. Fonte: http://josemilagre.com.br/blog/2014/05/25/as-duas-faces-do-direito-ao-es... – acesso em 13/06/2014.

9. Fonte: http://www.conjur.com.br/2014-jun-18/airton-portela-constituicao-pressup... – acesso em 24/06/2014.

10. Nos Estados Unidos há quem defenda a inadmissão do direito ao esquecimento, que pode atentar contra a liberdade de expressão, pois, haveria a possibilidade de pessoas mal intencionadas e corruptos solicitarem a retirada do conteúdo com fins de censura. Fonte: http://www1.folha.uol.com.br/tec/2014/05/1455521-direito-ao-esquecimento... – acesso em 02/072014.

11. Fonte: http://www.conjur.com.br/2013-set-26/lei-americana-coloca-sites-xeque-ex... – acesso em 02/07/2014.

12. Fonte: http://www.gazetadopovo.com.br/m/conteudo.phtml?id=1381368&tit=Os-limite... – acesso em 18/06/2014.

13. Fonte: http://fernandafav.jusbrasil.com.br/noticias/121548903/google-recebe-12-... – acesso em 11/06/2014.

14. Recurso Especial n° 1.334.09 – STJ.

15. Anderson Schreiber. Direito Civil e Constituição. São Paulo. Atlas. 2013. P.467.

16. Recurso Especial n° 131.6921. Relatora Ministra Nancy Andrighi . “(...)5. Os provedores de pesquisa realizam suas buscas dentro de um universo virtual, cujo acesso é público e irrestrito, ou seja, seu papel se restringe à identificação de páginas na web onde determinado dado ou informação, ainda que ilícito, estão sendo livremente veiculados. Dessa forma, ainda que seus mecanismos de busca facilitem o acesso e a consequente divulgação de páginas cujo conteúdo seja potencialmente ilegal, fato é que essas páginas são públicas e compõem a rede mundial de computadores e, por isso, aparecem no resultado dos sites de pesquisa. 6. Os provedores de pesquisa não podem ser obrigados a eliminar do seu sistema os resultados derivados da busca de determinado termo ou expressão, tampouco os resultados que apontem para uma foto ou texto específico, independentemente da indicação do URL da página onde este estiver inserido. 7. Não se pode, sob o pretexto de dificultar a propagação de conteúdo ilícito ou ofensivo na web, reprimir o direito da coletividade à informação. Sopesados os direitos envolvidos e o risco potencial de violação de cada um deles, o fiel da balança deve pender para a garantia da liberdade de informação assegurada pelo art. 220, § 1º, da CF⁄88, sobretudo considerando que a Internet representa, hoje, importante veículo de comunicação social de massa”.

17. Fonte: http://www.cjf.jus.br/cjf/CEJ-Coedi/jornadas-cej/vijornada.pdf – acesso em 11/06/2014.

18. Anderson Schreiber. Ibid. P.467.

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