Design Defeituoso - os verdadeiros motivos da proposta de inclusão da Gestão de Restrições Digitais no HTML 5

Por Kira, organizador de campanhas da Free Software Foundation

Data da publicação: 

Junho de 2013

Há um conjunto de mitos que tornaram-se os argumentos mais recorrentes para a defesa do plano do W3C para “Extensões de Mídia Criptografada” (EMC), um esquema de Gestão de Restrições Digitais (DRM, sigla de Digital Restrictions Management) para HTML51 - a próxima versão da linguagem de marcação com a qual a Web é construída.

Estes argumentos obscurecem a ameaça que este plano representa para a liberdade na Internet. Por isso é urgente enviar uma mensagem forte e clara para o W3C e suas organizações-membros, afirmando que o DRM embutido no HTML5 é uma traição a todos os usuários da Web e põe em xeque a missão auto-declarada do W3C de fazer os benefícios da Web “disponíveis a todas as pessoas, independentemente do seu hardware, software, infraestrutura de rede, idioma nativo, cultura, localização geográfica ou capacidade física ou mental.” O W3C foi criado para trazer a visão de uma Internet indivisível e para para a garantia do pleno potencial da rede. O DRM é contrário a esse objetivo.

Entre os argumentos mais utilizados para justificar a inclusão de DRM no HTML5 podemos citar os seguintes:

  • que o DRM como é usado hoje não funciona, que ele existe para proteger os criadores, mas uma vez que é facilmente quebrado e pode ser contornado, é em grande parte ineficaz e irrelevante;
  • que o DRM em HTML5 é um compromisso necessário para finalmente pôr fim à proliferação de plugins proprietários e específicos para cada navegador e plataforma, como o Adobe Flash Player e o Microsoft Silverlight;
  • que a Web precisa de DRM em HTML5 para que Hollywood e outros gigantes da mídia comecem finalmente a dar a prioridade para a Web em relação a outras mídias tradicionais.
  • Todos esses mitos baseiam-se em equívocos perigosos sobre como as Extensões de Mídia Criptografada funcionam, sobre por que a ameaça de boicote feita por Hollywood é completamente vazia, sobre os verdadeiros motivos do desenvolvimento do DRM, e sobre qual é o propósito de se adotar padrões Web. Implementar a proposta das Extensões de Mídia Criptografada, iria, simultaneamente, legitimar o DRM através do padrão HTML5 e abrir mão do propósito dos padrões Web por motivos fúteis. Este não é um compromisso para o avanço da Web, é uma esvaziamento completo dos princípios do W3C.Quando um desses mitos é evocado, podemos usar os seguintes argumentos para responder:

    1. DRM não tem nada a ver com proteção de copyrights. Isso é uma cortina de fumaça. DRM tem a ver, na verdade, com a prática de limitar a funcionalidade de dispositivos para depois vender recursos de volta na forma de serviços.

    O entendimento generalizado do público sobre o DRM é o de que ele existe para impedir a cópia não autorizada de obras protegidas por copyrights. Na verdade isso não faz sentido: esta seria uma função ineficaz por sua própria natureza, pois é impossível mostrar uma coisa a uma pessoa e ao mesmo tempo manter essa coisa escondida dela. Entender o DRM apenas nesta perspectiva é um grave erro que deixa de evidenciar a verdadeira função do DRM, esta sim, incrivelmente eficaz: ele serve para impedir usos totalmente legais de tecnologias, para que depois as empresas de mídia possam cobrar mais e mais pela oferta de serviços e funcionalidades que jamais deveriam ter sido removidos dos dispositivos, para começar a conversa.

    Os copyrights já representam uma forma de controle e pressão sobre aqueles que compartilham e distribuem conteúdos, mas DRM representa controle e limitação sobre as inovações tecnológicas que trouxeram aos usuários possibilidades de acesso e uso de conteúdos antes inimagináveis. Livre de limites impostos tecnologicamente, qualquer pessoa pode ter acesso aos conteúdos que preferir, sempre que quiser, de onde quiser, em qualquer dispositivo escolhido, e da maneira que quiser. Com a imposição de restrições digitais, gigantes da mídia podem impedir, por exemplo, que os usuários optem por não ver anúncios ou que visualizem conteúdos em múltiplos dispositivos - para depois cobrar para abrir exceções a estas limitações impostas por eles mesmos. Isso dá às empresas de mídia total controle sobre como as pessoas usam seus próprios dispositivos tecnológicos e cria um enorme mercado, a partir de uma escassez produzida artificialmente. Essas práticas de exploração atingem a grande maioria dos usuários que adquirem seus conteúdos de forma legal, e já estão atrofiando por demais o crescimento da Web.

    Ian Hickson, o autor e mantenedor da especificação HTML5, atualmente não apenas é a pessoa incumbida de supervisionar o padrão HTML5 no W3C, mas também é um engenheiro da Google (ironicamente, um dos maiores defensores corporativos da proposta das EMC). Ele detona a ideia de que o propósito do DRM é fazer cumprir copyrights e expõe outra perspectiva detalhadamente2:

    Argumentar que DRM não funciona é, no final das contas, errar o alvo. O DRM está funcionando muito bem nos mercados de vídeo e de livros.

    De fato, os sistemas DRM foram todos quebrados, mas isso não importa para os defensores do DRM. Os aparelhos de DVD licenciados ainda aplicam as restrições. Os fornecedores do mercado de massa não podem criar DVDs sem licença, então estes produtos continuam a ser uma curiosidade do mercado negro ou do mercado cinza. O DRM falhou na área da música, não porque o DRM esteja condenado, mas porque os provedores de conteúdo3 têm vendido seus conteúdos digitais sem DRM, e, assim, permitiram a emergência de uma gama de tipos de dispositivos tocadores de música que não esperavam (como os dispositivos tocadores de “MP3”). Se os CDs tivessem sido criptografados, os iPods não seriam capazes de ler o seu conteúdo, porque os provedores de conteúdo teriam podido usar seus contratos de DRM como mecanismos de pressão para impedir esta possibilidade. O propósito do DRM é dar a provedores de conteúdo controle sobre fornecedores de software e hardware, e esse propósito tem se cumprido.

    2. O DRM no HTML5 não elimina a existência de plug-ins proprietários e desenvolvidos especificamente para certos navegadores e plataformas; na verdade, é um incentivo a mais para a sua existência.

    A Web certamente seria melhor sem o Microsoft Silverlight e o Adobe Flash Player, mas a ideia de que colocar DRM embutido no próprio HTML para torná-los obsoletos é um absurdo. A proposta das EMC não faria os plugins específicos de plataformas proprietárias desaparecerem; na verdade, cria um novo espaço para eles como módulos de decodificação de conteúdo (MDL). Este não seria um problema menor para os usuários da Web, especialmente aqueles que usam navegadores Web e sistemas operacionais de software livre. O fato de o DRM ganhar legitimidade como um padrão Web sim, seria um problema muito maior.

    Proporcionar um espaço para um esquema de DRM em HTML5 provoca o tipo de incompatibilidade que o HTML foi criado para desfazer. Os EMEs exigiriam que os navegadores e sistemas operacionais proprietários implementassem dispositivos de controle mais restritivos para evitar que o DRM seja burlado. Como consequência disso, as EMC seriam capazes de detectar quando o software utilizado pelo usuário não adotar tais dispositivos de controle (como é o caso do software livre, especificamente os sistemas operacionais GNU+Linux) e poderiam se recusam a entregar os conteúdos.

    Novas implementações de tecnologia anti-usuário não são preferíveis às antigas implementações de tecnologia anti-usuário. Embora possa eliminar as demandas corporativas para Silverlight e Flash, pelo menos na sua formulação atual, o plano de Extensões de Mídia Criptografada pega os componentes que tornam essas tecnologias específicas terríveis para os usuários (DRMs, péssimo suporte em diferentes plataformas, etc) e injeta-os diretamente no tecido da Web. Isto é equivalente a convidar o Microsoft Silverlight, o Adobe Flash Player e coisas do tipo para serem parte do padrão HTML5.Como escreve a Electronic Frontier Foundation (EFF)4:

    A proposta de EMC sofre de muitos problemas, porque ela abdica explicitamente da responsabilidade sobre os problemas de compatibilidade e permite que sites exijam software específico de propriedade de terceiros ou até mesmo hardware especial e determinados sistemas operacionais (todos chamados pelo nome de “módulos de decodificação de conteúdo” genéricos, ou de MDCs, e nenhum deles explicitamente chamado de EMC). Os autores da proposta dos EMC continuam dizendo que aquilo que os MDCs são e fazem, bem como sua origem, é algo totalmente fora do escopo das Extensões de Mídia Criptografada, e que as próprias EMCs não podem ser pensadas como DRM porque nem todos os Módulos de Decodificação de Conteúdo são sistemas DRM. No entanto, se o cliente não puder provar está usando um determinado artefato proprietário exigido pelo site, e, portanto, não tem um MDC aprovado, ele não pode processar o conteúdo do site. Perversamente, este é exatamente o inverso da razão pela qual o Consórcio World Wide Web existe, em primeiro lugar. O W3C está aí para criar normas compreensíveis, publicamente implementáveis que garantam a interoperabilidade, para não facilitar uma explosão de novos softwares mutuamente incompatíveis e de sites e serviços que só podem ser acessados por determinados dispositivos ou aplicações. Mas as EMC são uma proposta para trazer exatamente essa dinâmica disfuncional em HTML5, mesmo arriscando uma volta aos “maus velhos tempos, antes da Web” de interoperabilidade deliberadamente limitada. ... Com demasiada frequência, as empresas de tecnologia já correram umas contra as outros para construir emaranhados restritivos que se adaptem aos caprichos de Hollywood, vendendo seus usuários no processo. Mas os padrões abertos da Web são um antídoto para essa dinâmica, e seria um erro terrível para a comunidade Web deixar a porta aberta para a gangrenosa cultura anti-tecnologia de Hollywood infectar os padrões W3C. Isso prejudicaria as próprias finalidades para as quais o HTML5 existe: para construir a alternativa de um ecossistema aberto para toda as funcionalidades que estão faltando em padrões Web anteriores, sem todos os problemas de limitações dos dispositivos, de incompatibilidade de plataformas e de falta de transparência que foram criados por plataformas como o Flash. O HTML5 era para ser melhor do que o Flash, e a ausência de DRM é exatamente o que iria torná-lo melhor.

    3. A Web não precisa da grande mídia; a grande mídia precisa da Web.

    A ideia de que Hollywood, a Motion Pictures Association of America, a Recording Industry Association of America, ou qualquer outro gigante da mídia detém o poder de compra na Web é uma farsa. A Web está aí, ela é o nexo de convergência de mídias, e está engolindo outras indústrias. Grandes empresas de mídia sabem que devem se adaptar ou sair do negócio, mas estão audaciosamente tentando nos convencer de que a Web deve fornecê-los com um outro sistema de controle ainda mais expansivo sobre a distribuição de mídia on-line do que as restrições legais de longo alcance das quais eles já abusam5. Essas ameaças não são novas. Durante as negociações sobre a Broadcast Flag6,7, e a implementação de DRM para a televisão digital de alta definição nos EUA, Fritz Attawaym, da Motion Pictures, disse que “o conteúdo de alto valor migraria” da televisão, se a Broadcast Flag não fosse imposta. Ele disse ao Congresso que os temores com relação às infrações, na ausência de um mandato de Broadcast Flag, “levará os criadores de conteúdo a deixarem de fazer a sua programação de alto valor disponível para distribuição pela televisão em transmissão digital [e] a transição para a TV digital estaria seriamente ameaçada.”

    Glynn Moody analisa bem estas ameaças vazias que atacam o software livre e a liberdade na Internet8:

    Vejamos o histórico de ameaças de boicote a transmissões sem DRM, por parte dessas empresas. Em 2003, o Grupo de Discussão sobre Proteção à Radiodifusão dos EUA (um comitê do Copy Protection Technical Working Group, que funciona em Hollywood) começou a trabalhar em um plano para implantação de DRM chamado “Broadcast Flag para Transmissões de Alta Definição da América”. Eu participei de cada um desses encontros, trabalhando em nome da Electronic Frontier Foundation [e dos projetos de software livre GNU Radio e MythTV, que a EFF representava]. Várias e várias vezes, os detentores de direitos presentes na sala durante as negociações da Broadcast Flag tentaram criar um senso de urgência, ameaçando boicotar a TV de alta definição americana se não conseguissem garantir a adoção de DRM. Eles repetiram essas ameaças em suas apresentações junto à Comissão Federal de Comunicações (órgão nos EUA equivalente ao Ofcom no Reino Unido9) e em suas reuniões com congressistas norte-americanos. Qual foi o resultado? Então o que aconteceu? Será que eles foram bem sucedidos em suas ameaças? Será que eles foram explicar para os seus acionistas que a razão pela qual eles não estavam transmitindo nada naquele ano deveu-se ao fato de o governo não deixá-los controlar as TVs? Não. Eles transmitem. Eles continuam a transmitir hoje, sem DRM.

    A EFF torna isso bem claro na seguinte declaração10:

    A percepção é de que Hollywood nunca permitirá filmes na Web, se não puder onerá-los com restrições de DRM. Mas a ameaça de que Hollywood pode não querer mais brincar, juntar suas tralhas e ir para casa é ilusória. Cada filme que Hollywood lança está rapidamente disponível para aqueles que realmente querem piratear11 uma cópia. Volumes enormes de música são vendidos pela iTunes, Amazon, Magnatune e dezenas de outros sites sem a necessidade de DRM. Serviços de streaming como o Netflix e Spotify são bem sucedidos porque eles são mais convenientes do que as alternativas piratas, não porque os DRM fazem alguma diferença para melhorar os seus negócios. A única razão lógica coerente para Hollywood exigir DRM é que os estúdios de cinema querem controle de veto sobre como as tecnologias são projetadas – principalmente aquelas que alcançam grande popularidade. Os estúdios de cinema têm utilizado DRM para impor restrições arbitrárias sobre os produtos, inclusive impedindo o avanço rápido de trechos dos filmes (fast forward) e a imposição de controles de reprodução regionais, além de criar regimes disciplinares complicados e caros para as empresas de tecnologia que participam de pequenos consórcios de mídia, e de dar a grandes empresas de tecnologia o direito de veto sobre a inovação.

    Ajude a proteger a liberdade na Internet: diga ao W3C que DRM não deve ter lugar em seus padrões.

    Apoie a campanha Defective by Design, promovida pela Free Software Foundation - que busca conseguir 50 mil assinaturas contra a inclusão de DRM no HTML5. Assine a petição em http://www.defectivebydesign.org/no-drm-in-html5

    Você também pode entrar em contato com o W3C neste endereço: http://www.w3.org/Consortium/contact

    ---
    1. N.E.: As Extensões de Mídia Criptografada são uma série de “extensões” do HTML 5 que permitirão proteger o conteúdo com DRM. Mais detalhes em http://www.w3.org/TR/2013/WD-encrypted-media-20130510/

    2. Ver em https://plus.google.com/107429617152575897589/posts/iPmatxBYuj2

    3. A articulação Defective by Design sugere que não se use a palavra “conteúdo” neste contexto. Ver mais em http://www.gnu.org/philosophy/words-to-avoid.html#Content

    4. Em https://www.eff.org/deeplinks/2013/03/defend-open-web-keep-drm-out-w3c-s...

    5. Ver em https://www.eff.org/press/releases/fifteen-years-dmca-abuse

    6. Ver em https://www.eff.org/deeplinks/2009/06/dtv-era-no-broadcast

    7. Broadcast Flag é uma marca eletrônica (bits de status ou “flag”) embutida nos programas de TV digital que controla e delimita os usos possíveis pa ra cada
    conteúdo – gravação, reprodução, qualidade do conteúdo gravado, possibilidade de compartilhamento, etc.

    8. Em artigo publicado aqui: http://blogs.compdigitaltelevisionuterworlduk.com/open-enterprise/2013/0...

    9. N.E.: Equivalente à Anatel, no Brasil.

    10. Em https://www.eff.org/deeplinks/2013/03/defend-open-web-keep-drm-out-w3c-s...

    11. Nota da Free Software Foundation: nós apoiamos o argumento de EFF, mas não usaríamos o termo “pirata”.

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