Construindo uma agenda latino-americana de estudos sobre vigilância, tecnologia e sociedade

Rodrigo José Firmino, professor titular do Programa de Pós-Graduação em Gestão Urbana, Pontifícia Universidade Católica do Paraná.

Fernanda Glória Bruno, professora do Programa de Pós-Graduação em Comunicação e Cultura e do Instituto de Psicologia, Universidade Federal do Rio de Janeiro.*

Data da publicação: 

Março | 2023

Resumo

Tornou-se incontornável questionar as condições de constituição dos arranjos sociotécnicos de vigilância em diferentes contextos, e com isso assistimos a um aumento do interesse por estudos dedicados à compreensão das especificidades da construção social e histórica da vigilância nos países latino-americanos desde ontologias e epistemologias mais próximas de suas realidades. Isso tem acontecido tanto do ponto de vista da compreensão dos processos de uso da vigilância por governos e empresas na gestão neoliberal de corpos e territórios, quanto na organização da resistência à violência mais ou menos explícita operada por tecnologias de controle. Neste artigo, descrevemos as circunstâncias em que uma agenda decolonial para os países latinoamericanos foi construída por estudiosos, ativistas e artistas associados à Rede Latino-Americana de Estudos de Vigilância, Tecnologia e Sociedade (LAVITS). O trabalho da rede sempre se beneficiou do pensamento crítico formado no campo dos estudos de vigilância com contribuições cruciais vindas da Surveillance Studies Network e Surveillance & Society nos últimos vinte anos.

Introdução

Os estudos de vigilância se estabeleceram em um amplo campo de pesquisa nas últimas duas décadas, principalmente a partir de uma rede de pesquisadores, instituições e publicações, guiados por um crescente interesse na construção de abordagens para abordar a vigilância e o controle em um mundo pós-11 de setembro. Surveillance & Society1 é um ator central neste processo, e muitos de nós nos beneficiamos desta fonte única e sem precedentes de referências em estudos de vigilância.

Diversos temas e perspectivas foram propostos e, à medida que o campo ganhou corpo crítico e diversidade na constituição de uma rede de estudos, ficou evidente que não se pode falar em sociedade de vigilância, mas de sociedades de vigilância. O fenômeno global de extração, coleta, armazenamento e análise de dados e informações sobre indivíduos e grupos populacionais apresenta diferentes arranjos de acordo com as circunstâncias regionais e históricas.

Tornou-se incontornável questionar as condições de constituição dos arranjos sociotécnicos de vigilância em diferentes contextos, e com isso assistimos a um aumento do interesse por estudos dedicados à compreensão das especificidades da construção social e histórica da vigilância nos países latino-americanos desde ontologias e epistemologias mais próximas de suas realidades. Isso tem acontecido tanto do ponto de vista da compreensão dos processos de uso da vigilância por governos e empresas na gestão neoliberal de corpos e territórios, quanto na organização da resistência à violência mais ou menos explícita operada por tecnologias de controle.

Diante desse contexto, fica evidente a necessidade de construção de uma agenda regional de estudos sobre vigilância, tecnologia e sociedade. Nos últimos treze anos, a construção dessa agenda mais situada abordou uma série de questões. De que adianta construir uma rede de pesquisa sobre vigilância, tecnologia e sociedade na América Latina? Como processos globais ligados à vigilância e securitização se inscrevem em contextos locais e singulares? Em que medida a problematização desses processos na América Latina coincide com as questões propostas pelo chamado Norte Global? Como a história colonial latino-americana ressoa com os atuais dispositivos de vigilância? Como as assimetrias e interseccionalidades de raça, gênero e classe afetam os arranjos sociotécnicos local e regionalmente? Que significados assumem “assistir” e “ser observado” nos contextos assimétricos da América Latina?

Dessa necessidade de uma atenção consciente e situada, em diálogo com as singularidades latino-americanas, duas outras questões são indissociáveis do processo de compreensão dos arranjos sociotécnicos de vigilância e controle na região. Por um lado, e a partir da ideia de tecnodiversidade, como se dá a apropriação e ressignificação de tecnologias produzidas em um contexto global e quais as tensões nos contextos em que essas tecnologias estão inseridas? Por outro lado, como os movimentos de resistência aos processos contemporâneos de extrativismo se estabelecem de forma situada e em relação a processos históricos e interseccionais de luta contra formas de discriminação, injustiças socioambientais e dominação colonial?

Com essas preocupações em mente, a LAVITS (Rede Latino-Americana de Estudos de Vigilância, Tecnologia e Sociedade)2 foi fundada em 2009 e, desde então, tem sido amplamente organizada por brasileiros com importantes contribuições da Argentina, México, Chile, Colômbia e Costa Rica. Um dos desafios mais significativos da rede é justamente promover a integração entre os países da América Latina com limitado apoio financeiro, respeitando suas diferentes histórias, mas valorizando profundas semelhanças no contexto tecnopolítico regional. Além de pesquisas e ações em diferentes períodos, o LAVITS organizou seis simpósios internacionais desde sua fundação, com diferentes agendas e cidades-sede.3

O principal objetivo da rede é ser um meio de intercâmbio entre pesquisadores, ativistas e artistas latino-americanos interessados nas conexões entre vigilância, tecnologia e sociedade. É importante ressaltar que o alcance mais amplo da rede vai além da questão da vigilância e direciona as preocupações de pesquisa e ação social para relações mais amplas entre as tecnologias digitais, a tecnopolítica e as singularidades das sociedades latino-americanas. A rede envolve pesquisadores de diferentes áreas (incluindo comunicação, sociologia, antropologia, psicologia, ciência da computação, direito, arquitetura e estudos urbanos) e por mais de uma década gerou uma gama diversificada de atividades, publicações, pesquisas, relatórios e iniciativas cívicas ação decorrente de discussões entre grupos de pesquisa e ativismo na América Latina e em cooperação com países da Europa e América do Norte, especialmente com colegas da Surveillance Studies Network.

Desde a sua fundação, um aspecto importante da atividade do LAVITS tem sido a qualificação de pesquisadores (de diversos níveis acadêmicos) em temas de interesse da rede e das atividades da região, juntamente com engajamento com grupos e laboratórios associados ao LAVITS e outros parceiros não governamentais.4 Pode-se dizer com segurança que se estabeleceu no Brasil e na América Latina um campo fértil e interdisciplinar de pesquisa e ação social nas interseções entre vigilância, tecnologia e sociedade, para o qual o LAVITS deu uma contribuição decisiva.

Rumo a uma Agenda Decolonial

A relação entre tecnologia, vigilância e colonialismo não é apenas histórica, mas também recursiva. Longe de ser uma coisa do passado e uma inovação da modernidade, o colonialismo se reinscreve de diferentes formas nas soluções tecnológicas e nos mecanismos de vigilância e segurança que hoje fazem parte da agenda neoliberal de governos e corporações em muitas partes do mundo. Particularmente no Brasil e na América Latina, a condição colonial de laboratório de extração de recursos, experimentação e difusão de tecnologias sem as devidas proteções legais, econômicas, sociais, tecnopolíticas, ambientais etc. está sendo construida por uma ampla gama de setores hoje: entretenimento, serviços, saúde, educação, trabalho, mobilidade urbana, saneamento, segurança etc.

Essa recursividade colonial também se aplica a processos de violência, discriminação, exploração e expropriação que operam particularmente entre populações e territórios vulneráveis, especialmente comunidades negras, indígenas e mulheres. Ao mesmo tempo, a história e as múltiplas reinscrições do colonialismo no Brasil e na América Latina são repletas de atritos, confrontos, resistências e insurgências.

Portanto, entender e se engajar nas relações rearranjadas entre tecnologia, vigilância e colonialismo nos contextos brasileiro e latino-americano implica considerar as dinâmicas que envolvem tanto a expropriação quanto a apropriação, tanto a exploração quanto a insurgência, ainda que em condições assimétricas.

Com o amadurecimento da rede nos últimos anos, LAVITS tem contribuído para a construção de uma agenda decolonial de pesquisa, educação e ação social sobre o impacto das operações extrativistas de tecnologias de vigilância e controle sobre os direitos, liberdades fundamentais e modos de vida no região. Também discutimos os limites da noção moderna e liberal de “sujeitos de direito” diante dos conflitos produzidos pela mediação tecnológica, deslocando e expandindo as fronteiras do extrativismo e as exigências de considerar “novos sujeitos de direito, direitos de difusão propriedade, direitos conexos, [e] direitos da natureza”, para citar alguns dos exemplos que aparecem no contexto legal (Parra 2022). Essa agenda, portanto, visa também fomentar práticas e saberes tecnopolíticos que operem como resistência às lógicas extrativistas.

Por extrativista entendemos de modo amplo as tecnologias e práticas desenvolvidas por grandes corporações e estados, voltadas para a extração de dados, valor e conhecimento sobre indivíduos, territórios e populações em diferentes níveis: comportamental, cognitivo, psíquico, emocional, biométrico, de saúde, trabalhista, social e ambiental (Mezzadra 2020; Gago 2019; Mbembe 2018; Quijano 2007; Santos e Meneses 2009).

Essa agenda também envolve a valorização do poder de populações discriminadas, estigmatizadas e subalternas (Roy 2011; Mendoza 2018; Santos 1987; Spivak 1988; McFarlane 2019), particularmente por meio da construção de modos de resistência e sobrevivência que oferecem apropriação subversiva e contra opressiva de tecnologias digitais, dados e narrativas nas periferias urbanas da América Latina. Isso significa repensar processos que normalmente valorizam as informalidades da elite e criminalizam as informalidades dos subalternos em diferentes escalas – do global, entre países do “Norte” e do “Sul”, ao local, entre os “centros” e “ periferias” das cidades latino-americanas. Nosso enfoque geográfico tem, portanto, priorizado cada vez mais territórios estigmatizados por “ausências” – onde a narrativa hegemônica envolve uma suposta ausência de civilidade, infraestrutura, qualidade de vida, condições dignas de vida etc. – e pelo apagamento deliberado de “potenciais e presenças” – onde as presenças mais visíveis são geralmente o crime, a violência e os confrontos com a polícia.

Esta agenda está, por sua vez, ligada à procura de experiências, práticas e modos de vida que potenciem a tecnodiversidade, não só através do questionamento da natureza universal da tecnologia, mas também através da afirmação e construção de uma “nova imaginação tecnológica que permite novas formas de vida política e estética e novas relações com os não-humanos, a terra e o cosmos” (Hui 2020: 95). O Brasil e a América Latina são historicamente férteis não apenas em biodiversidade, mas também em tecnodiversidade. Povos indígenas, coletivos feministas, afrofuturistas, tecnoativistas urbanos e uma série de práticas sociotécnicas locais e cotidianas vêm estabelecendo usos dissidentes e contra-hegemônicos de tecnologias, juntamente com modos de vida mediados por tecnologias que operam na contramão do modelo patriarcal, colonial e extrativista dos grandes projetos tecnológicos modernos e contemporâneos.

Como mencionamos, nos últimos anos, a LAVITS tem se preocupado em construir essa agenda decolonial a partir de uma visão latino-americana. Desde 2015, a rede conta com o apoio da Fundação Ford, que possibilitou a formação de dois projetos de pesquisa e ação intitulados “Assimetrias e [In]visibilidades da Vigilância na América Latina” e, mais recentemente, “Extrativismo, Tecnopolítica e Agendas Descolonizantes no Contexto Pós-Pandemia Covid-19.” O contexto pandêmico ajudou a ampliar nossas preocupações sobre as lógicas e práticas dos atores do capitalismo de vigilância e o extrativismo de dados inerente às plataformas digitais.

Também houve aumento do envolvimento de grandes corporações de tecnologia no fornecimento de soluções para uma série de crises associadas à pandemia. Reaplicando uma lógica colonial à sobreposição estratégica do capitalismo do desastre com o capitalismo da vigilância, tais corporações vêm ocupando cada vez mais espaço na “modernização” das infraestruturas governamentais latino-americanas de gestão, processamento e análise de dados, não raro sob a marca de cidades inteligentes (claramente em crise no Norte Global, mas ainda populares na América Latina). Enquanto isso, essas mesmas corporações tornaram-se atores centrais no fornecimento de soluções tecnológicas envolvendo inteligência artificial, aprendizado de máquina e automação de processos decisórios no setor público, com acesso a importantes bases de dados em escala nacional e produção de conhecimento voltada para na formulação de políticas públicas.

A pandemia também redimensionou a escala dos problemas envolvidos nas tecnologias e políticas de extração e processamento de dados, destacando suas conexões com os problemas socioambientais. Tornou-se então urgente reposicionar o debate e a pesquisa em uma zona de interseção entre tecnologia, cultura e natureza, juntamente com a interpenetração entre redes digitais e territórios físicos existenciais e as tensões entre o poder supostamente ilimitado da extração de dados por máquina, os limites de recursos naturais e os custos ambientais e sociais envolvidos.

Materializando uma agenda

Vários projetos se desenvolveram a partir dos principais pontos da agenda descrita acima. Estas são uma maneira interessante de ver como os fatores determinantes em nosso movimento em direção a uma abordagem situada dos estudos de vigilância se materializam em projetos de pesquisa, eventos e ativismo.

Um exemplo ilustrativo da atuação da rede com atividades envolvendo uso negligente e predatório de dados, inteligência artificial e automatização da classificação social envolve a crescente adoção de sistemas de reconhecimento facial por serviços públicos e equipamentos em espaços públicos. Com 54% da população brasileira classificada como negra – 85% das pessoas abordadas pela polícia nas cidades brasileiras e dois terços dos encarcerados são negros (iddd e data_labe 2022) –, o país se apresenta como um território frágil para a implementação de uma forma de tecnologia reconhecidamente racista e discriminatória (Raji et al. 2020; Buolamwini 2017). Um eixo de ação e agenda sobre o tema tem sido a articulação com ativistas, movimentos sociais e parlamentares em três esferas (municipal, estadual e federal) para a construção de uma legislação que proíba as tecnologias de reconhecimento facial. No Brasil, projetos de lei já foram iniciados ou apresentados nos municípios do Rio de Janeiro, Recife e Curitiba, e nos estados do Rio de Janeiro e Paraná. A LAVITS pretende ampliar as discussões e projetos legislativos em todo o país com o ambicioso objetivo de incluir a proibição na legislação federal, que se sobrepõe a todas as outras.

Assim, o projeto de banimento do reconhecimento facial é um bom exemplo das diversas esferas de atuação da rede:

• no âmbito acadêmico e científico, com base na produção de material e estudos críticos;
• na educação, por meio de títulos de mestrado e doutorado para pesquisa sobre o tema (juntamente com ajuda financeira);
• no ativismo, por meio de conexões necessárias com movimentos sociais e organizações que lutam por direitos;
• na legislação, através do trabalho fundamental de profissionais do direito e políticos na elaboração de contas; e
• no debate público, por meio de audiências públicas e inserções na mídia e redes sociais.

O projeto de pesquisa “Mapeando os Avanços do Capitalismo de Vigilância nas Universidades Públicas da América do Sul”, desenvolvido no âmbito da “Educação sob Vigilância”, é outro exemplo significativo de intervenção situada no envolvimento de grandes corporações na prestação de serviços públicos na região . Esta pesquisa mapeou dados de 335 instituições públicas de ensino superior, revelando como a comunicação institucional nas universidades públicas é cada vez mais dominada pelo Google e pela Microsoft. Constatou-se que cerca de 80% das instituições públicas da região possuem convênios com as chamadas big techs (Da Cruz, Sarava e Amiel 2019).

Influenciando o debate público sobre segurança, tecnologia e direitos, o projeto “Territórios de Exceção: Violação de Direitos e Uso de Helicópteros Policiais no Rio de Janeiro”,5 realizado em parceria com diversas organizações locais, teve como violações de direitos causadas pela política de segurança pública do estado, que intensificou as operações policiais por meio do uso de helicópteros militares como plataformas móveis de tiro nas áreas superpovoadas das favelas e periferias da cidade. O relatório resultante desta investigação, juntamente com outras ações civis, influenciou a decisão do Supremo Tribunal Federal de proibir operações policiais nas favelas durante a pandemia. A reportagem foi desenvolvida em plataforma digital de narrativas georreferenciadas sobre direitos humanos, territoriais e ambientais e recebeu diversos prêmios e menções honrosas na categoria jornalismo investigativo de órgãos brasileiros e ibero-americanos.

O ativismo de dados e tecnologia digital nas periferias urbanas foi o foco de outro projeto de pesquisa envolvendo laboratórios afiliados ao LAVITS. Intitulado “Periferias Digitais e Urbanismo Subalterno: Tecnopolítica Urbana e Ativismo Digital no Sul Global”, o projeto considera engajamentos criativos e políticos com infraestrutura, dados e tecnologias digitais na cidade como formas pelas quais populações vulneráveis podem recuperar o território como um espaço cotidiano e lugar de emancipação. Visava principalmente abordar a contribuição das práticas digitais emergentes nas margens urbanas para a compreensão das manifestações de um “urbanismo do Sul”. A pesquisa começou por meio de parcerias com ativistas digitais nas maiores favelas do Rio de Janeiro e se expandiu para estudar movimentos semelhantes na América Latina. Este também é outro caso relevante em que pesquisa e advocacy social se cruzam, uma vez que os atores digitais periféricos começaram a desenvolver suas próprias pesquisas de mestrado e doutorado em um laboratório LAVITS (Jararaca: Laboratório de Tecnopolítica Urbana/PUCPR) durante o estudo, com apoio financeiro do rede.

Outra área em que se construiu uma agenda para estudos de vigilância na América Latina envolve temas relacionados às plataformas digitais. Como mencionado anteriormente, a centralidade das práticas extrativistas no colonialismo, da mineração ao trabalho escravo, desempenha um papel importante na reprodução das desigualdades que marcam as sociedades latinoamericanas e que explicam a amplitude de fenômenos como o capitalismo de plataforma. A crise económica, agravada pela chegada da COVID-19, tem vindo a aumentar o número de trabalhadores nas plataformas de entrega, aumentando também a concorrência entre elas, e consequentemente reduzindo a remuneração pela entrega. Simultaneamente, esses trabalhadores também produzem dados que são extraídos pelas plataformas, além de permitir a produção de dados sobre os clientes. O trabalho mediado pelas empresas-plataforma também evidencia outras formas de extrativismo, expondo os entregadores a riscos de contaminação por longas jornadas de trabalho como forma de proteger os consumidores que podem pagar pelo serviço de entrega e realizar seu trabalho remotamente. Não se trata apenas da simples extração e manipulação de dados de trabalhadores e usuáriosconsumidores, mas também da ampliação da transferência de riscos de uma parcela da população (cujo conforto pode ser garantido justamente pela intermediação de ofertas do capitalismo de plataforma) para outra parte, já desgastada e vulnerável em vários aspectos da vida urbana (e cuja condição de precariedade é potencializada justamente pelo mesmo capitalismo de plataforma).

Além disso, algumas das respostas dadas pelos poderes públicos à pandemia em diferentes contextos, locais e regionais, centraram-se na captação e produção de dados biológicos e na circulação de indivíduos através de aplicações a descarregar em smartphones e construídas em parceria com atores do setor privado, visando o controle epidemiológico da população (Lemos et al. 2022). Diante da urgência do combate ao vírus e à pandemia, tais iniciativas encontraram pouquíssimas resistências e questionamentos, ocupando espaços e validando práticas de biovigilância que tendiam a ser naturalizadas. Com isso, observamos a aceleração de processos que já foram desenhados nos últimos anos, mas que adquiriram uma nova legitimidade diante do grande problema comum e emergencial colocado pela pandemia do COVID-19.

A pandemia também redimensiona a escala dos problemas envolvidos nas tecnologias e políticas de extração e processamento de dados, destacando suas conexões com os problemas socioambientais. Desde então, tornouse urgente reposicionar o debate e a pesquisa de forma que enfatize a interseção entre técnica, cultura e natureza, bem como a interpenetração entre redes digitais e territórios físicos existenciais e as tensões entre o poder supostamente ilimitado de dados maquínicos extração e os limites dos recursos naturais e os custos ambientais e sociais em jogo.

Definindo uma posição tecnopolítica

Entre os princípios orientadores desta agenda para a América Latina, é importante reforçar alguns dos pontos de vista compartilhados por pesquisadores, ativistas e artistas que estão envolvidos com LAVITS e estudos de vigilância na região. Consideramos fundamental entender que as consequências do aumento do uso de práticas e tecnologias de vigilância tendem a aprofundar as desigualdades e assimetrias socioeconômicas na sociedade contemporânea, dificultando os debates por justiça social, justiça ambiental e justiça de dados, o que é particularmente grave em países do chamado Sul Global. Nessa perspectiva, a centralidade contemporânea das tecnologias de informação, materializadas nas políticas de vigilância como práticas de controle, exige uma reflexão crítica que possa questionar e subverter seus fundamentos epistemológicos e a comumente alegada neutralidade.

Este ponto de vista amplia a importância de consolidar perspectivas decoloniais e situadas na América Latina para pesquisas e ações sociais sobre tecnologia, vigilância e sociedade. Por um lado, trata-se de contestar/ enfrentar a reinscrição das operações coloniais e extrativas em territórios, corpos, epistemologias, ecossistemas e modos de vida. Por outro lado, trata-se de criar meios para fortalecer arranjos tecnopolíticos que retomem e ampliem a diversidade cosmotécnica latino-americana e a diversidade histórica de práticas, significados e usos da tecnologia na região.

A democratização da produção científica e tecnológica é assim reforçada por meio do diálogo entre saberes e práticas existentes em diferentes comunidades, cosmovisões e modos de vida, reconhecendo a tecnodiversidade e criando outras práticas e imaginários sociotécnicos. A LAVITS se baseia na construção de coletivos e redes inclusivas, anticapitalistas, democráticas e igualitárias, capazes de resistir e combater formas de opressão raciais, sexistas, capacitistas e antropocêntricas. Esses princípios, em última análise, permitem que o LAVITS promova o desenvolvimento interdisciplinar e crítico que valoriza a pesquisa e a experiência politicamente comprometidas, juntamente com a livre circulação e apropriação do conhecimento.

Referências

Buolamwini, Joy. 2017. Gender Shades: Intersectional Phenotypic and Demographic Evaluation of Face Datasets and Gender Classifiers. PhD diss., Massachusetts Institute of Technology.
Da Cruz, Leonardo Ribeiro, Filipe De Oliveira Sarava, e Tel Amiel. 2019. Coletando dados sobre o Capitalismo de Vigilância nas instituições públicas do ensino superior do Brasil. Trabalho apresentado nos Anais do 6º Simpósio Internacional LAVITS, Salvador, Brasil, 26–28 de junho. https://repositorio.unb.br/handle/10482/36912.
Gago, Verónica. 2019. A razão neoliberal: Economias barrocas e pragmática popular. São Paulo: Editora Elefante.
Hui, Yuk. 2020. Tecnodiversidade. São Paulo, BR: Ubu Editora.
Iddd e data_labe. 2022. Relatório Por que eu? Como o racismo faz com que as pessoas negras sejam o perfil alvo das abordagens policiais. https://iddd.org.br/por-que-eu-como-o-racismo-faz-com-que-as-pessoas-neg.... Consultado em 13-09-2022.
Lemos, André, Rodrigo Firmino, Daniel Marques, Eurico Matos, e Catarina Lopes. 2022. Smart Pandemic Surveillance? A Neo-Materialist Analysis of the “Monitora Covid-19” Application in Brazil. Surveillance & Society 20 (1): 82–99.
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McFarlane, Colin. 2019. Urban Fragments: A Subaltern Studies Imagination. Em Subaltern Geographies, editado por Tariq Jazeel e Stephen Legg, 210–230. Atenas, GA: Georgia University Press.
Mendoza, Breny. 2018. Can the Subaltern Save Us? Tapuya: Latin American Science, Technology and Society 1 (1): 109–122.
Mezzadra, Sandro. 2020. A Condição pós-colonial: história e política no presente global. São Paulo: Politeia.
Parra, Henrique. 2022. Da tecnopolítica às lutas cosmotécnicas: dissensos ontoepistêmicos face à hegemonia cibernética no Antropoceno. Em Engenharias e outras práticas técnicas engajadas, editado por John Kleba, Cristiano Cruz e Celso Alvear, 339–394. Campina Grande: EDUEPB.
Quijano, Aníbal. 2007. Colonialidad del poder y clasificación social. Em El giro decolonial: reflexiones para una diversidad epistémica más allá del capitalismo global, editado por Santiago Castro-Gómez e Ramón Grosfoguel. Bogotá: siglo del Hombre Editores.
Raji, Inioluwa Deborah, Timnit Gebru, Margareth Mitchell, Joy Buolamwini, Joonseok Lee e Emily Denton. 2020. Saving Face: Investigating the Ethical Concerns of Facial Recognition Auditing. Artigo apresentado no Proceedings of the AAAI/ ACM Conference AI, Ethics, and Society, Nova York, 7–9 de fevereiro de 2020. https://dl.acm.org/doi/proceedings/10.1145/3375627.
Roy, Anania. 2011. Slumdog Cities: Rethinking Subaltern Urbanism. International Journal of Urban and Regional Research 35 (2): 223–238.
Santos, Milton. 1987. O espaço do cidadão. São Paulo: Nobel.
Santos, Boaventura de Sousa e Maria Paula Meneses, eds. 2009. Epistemologias do sul. Coimbra: Edições Almedina.
Spivak, Gayatri Chakravorty. 1988. Can the Subaltern Speak? Em Marxism and the Interpretation of Culture, editado por Cary Nelson e Lawrence Grossberg, 271-313. Champaign: University of Illinois Press.
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* Firmino, Rodrigo José, e Fernanda Glória Bruno. 2022. Building a Latin American Agenda for Studies on Surveillance, Technology, and Society. Surveillance & Society 20 (4): 357-363. https://ojs.library.queensu.ca/index.php/surveillance-and-society/articl.... Licenciado sob uma licença Creative Commons Attribution Non-Commercial No Derivatives.

1. https://ojs.library.queensu.ca/index.php/surveillance-and-society/

2. https://lavits.org/

3. Vigilância, Segurança e Controle Social (Curitiba, 2009); Identificação, Identidade e Vigilância (Toluca, 2010); Vigilância, Tecnopolítica e Territórios (Rio de Janeiro, 2015); Novos Paradigmas de Vigilância: Perspectivas Latino-Americanas (Buenos Aires, 2016); Vigilância, Democracia e Privacidade: Vulnerabilidades e Resistências(Santiago, 2017); Assimetrias e (in)Visibilidades: Vigilância, Gênero e Raça (Salvador, 2019).

4. Centenas de pesquisadores formaram-se nesses treze anos de história, que envolveu também a criação de inúmeros laboratórios, como MediaLab/UFRJ, Pimentalab/UNIFESP, LabJor/Unicamp, LED/UFRJ e Jararaca: Laboratório de Tecnopolítica Urbana/PUCPR, para mencionar apenas alguns.

5. Ver https://documental.xyz/intervencao

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