Conectividade plena nas bordas!

Por Carlos A. Afonso, diretor executivo do Instituto NUPEF e conselheiro do Comitê Gestor da Internet no Brasil (CGI.br), eleito como um dos representantes do terceiro setor

Data da publicação: 

Agosto de 2010

Primeiro, um preâmbulo terminológico. Em textos recentes tenho frequentemente utilizado a frase “banda larga” entre aspas, ou simplesmente a substituo por banda pseudolarga. Do modo como é usada para caracterizar um serviço insatisfatório prestado pelas grandes operadoras de telecomunicações, em especial em países de menor desenvolvimento, o termo “banda larga” é no mínimo irônico. Provisoriamente, usarei “conectividade plena” para caracterizar uma conexão Internet com velocidade real de transmissão bidirecional de dados adequada a cada momento do desenvolvimento dos serviços da rede, que garanta uma plena experiência do usuário em termos de acesso a qualquer tipo de serviço com confiabilidade, qualidade e segurança. Essa é uma meta, um ideal a ser considerado em toda planificação estratégica para universalização da conectividade no país.

Uma característica central de qualquer conexão de banda larga (com ou sem aspas) é que ela pode ficar permanentemente ativa (haja ou não tráfego de dados entre a Internet e o computador ou rede local do usuário final) por um preço fixo mensal e sem qualquer tarifação adicional por unidade de tempo. Então, para essa banda larga de qualquer tipo – seja a nossa conexão “calhambeque” ou a “ferrari” de 100 Mb/s dos coreanos e japoneses, e em breve dos europeus – passo a usar neste texto a denominação de “conectividade permanente” ou “conexão permanente”.

A Internet existe porque nós existimos, ponto. Ela portanto só tem razão de ser pela interação humana a partir de suas bordas, as pontas da Grande Rede, o chamado “último quilômetro”. Pela mesma razão que não haveria vendedores de galinhas se ninguém quisesse galinhas, não haveria a Internet que conhecemos hoje se ninguém quisesse envolver-se na interação de informação que é a sua essência. Tudo que é feito nessa rede nos envolve obviamente e tem que ser voltado a nós, os chamados “usuários e usuárias finais”.

Países avançados começam a sacramentar esse direito em lei. A Suiça foi o primeiro país da Europa a aprovar esse reconhecimento, com a inserção da conectividade permanente a preços regulados como parte dos direitos cidadãos no conjunto de direitos que conformam a Obrigação de Serviço Universal (USO1). Vale ressaltar que a Swisscom, a principal operadora suiça, é uma empresa mista, com 57% de participação da Federação Suiça e 43% de acionistas privados.

Desde primeiro de julho de 2010 todos os finlandeses têm direito à conectividade permanente de no mínimo 1 Mb/s em seus domicílios, com a previsão de conectividade plena a 100 Mb/s em 2015, incluindo a universalização das redes celulares 4G/LTE que podem chegar a velocidades de até 70 Mb/s. A Europa como um todo discute a inserção da conectividade permanente na USO para todos os seus membros, com metas de conectividade plena similares.

Em documento publicado pelo Ministério Federal de Economia e Tecnologia no início de 2009, a Alemanha estabelece que todos os domicílios deverão ter conectividade permanente de pelo menos 1 Mb/s até o final de 2010, e 75% dos domicílios terão conexão a 50 Mb/s em 2014.2

Para a Europa como um todo espera-se a aprovação da reforma regulatória de telecomunicações ainda em 2010. Isso significa que a USO para a conectividade permanente em todos os domicílios deverá ser estendida a todos os membros da Comunidade, adaptando-a às regulações específicas de cada país membro. A meta geral para a Europa é garantir um mínimo de 30 Mb/s em todos os domicílios em 2020.

Todos os planos desses países contemplam também critérios cuidadosos para garantir gerenciamento adequado do espectro radioelétrico na universalização da conectividade, de modo que as tecnologias móveis emergentes possam estar generalizadas nos próximos quatro a cinco anos.

Os EUA realizam desde 2009 o mais amplo e extenso programa de elaboração de um plano estratégico em direção à conectividade plena do qual se tem notícia, com o envolvimento de milhares de pessoas e entidades, resultando em mais de 23 mil comentários em 74 mil páginas, com mais de 700 participantes. Isso foi condensado em um documento de 376 páginas, agora publicado pela Federal Communications Commission (FCC), o “Connecting America: The National Broadband Plan”.3 Os objetivos gerais para os próximos quatro a cinco anos são similares às propostas européias. O plano estadunidense enfatiza a importância de conectar escolas, centros comunitários e escritórios do governo a pelo menos 1 Gb/s até 2020.

O plano australiano merece destaque especial para os brasileiros, de vez que tem grande similaridade com o Plano Nacional de Banda Larga (PNBL) brasileiro. De fato, o plano australiano inclui a criação de uma empresa estatal, a National Broadband Network Corporation (NBN Co.), que estará encarregada de implementar espinhas dorsais de fibra óptica e garantir conectividade na borda em todos os locais onde o chamado “mercado” não garante serviços adequados. Essa empresa já está em operação e instalando redes em várias municipalidades australianas, e acaba de fechar um acordo de parceria com a maior empresa de telecomunicações australiana, a Telstra, para otimizar a estrutura nacional de espinhas dorsais e garantir nos próximos quatro a cinco anos conectividade plena na ponta, com fibra óptica em 90% dos domicílios conectados à velocidade de 100 Mb/s. O plano prevê que os domicílios restantes, em áreas mais remotas, sejam conectados a pelo menos 12 Mb/s via satélite ou redes de rádio digital.4 O custo total de investimento é estimado em cerca de US$40 bilhões (aproximadamente 5% do PIB PPP5 australiano).

No Brasil, a Telebrás, empresa estatal já existente, foi reativada em novas bases para realizar a estratégia do PNBL com objetivos e estratégia de atuação muito similares aos da NBN australiana. A Telebrás conta com uma vantagem excepcional: detém mais de 11 mil km de fibra óptica já instalada nas redes de transmissão elétrica, incluindo a rede Eletronet e redes da Petrobras, uma espinha dorsal que deve ultrapassar os 30 mil km em 2014 alcançando diretamente todas as capitais e principais cidades do país. É marcante notar que pelo menos um partido de oposição entrou com representação no Supremo Tribunal Federal (STF) para impedir a operação da Telebrás e com isso bloquear a realização do PNBL. O investimento estimado para o PNBL, com o objetivo de conectar mais de 80% dos domicílios a pelo menos 0,5 Mb/s em 2014, pode chegar a US$12 bilhões – ou 0,5% do PIB PPP brasileiro.

O PNBL tem sido debatido amplamente e muitos artigos já foram escritos sobre o assunto.6 Cabe apenas enfatizar que um modelo básico para resolver de vez o problema da universalização do acesso pleno à rede tem sido adotado com poucas variações substanciais em dezenas de países, em vários contextos políticos e níveis de desenvolvimento econômico, e a proposta brasileira segue essa tendência depois de um estudo cuidadoso das experiências já em andamento em vários países (incluindo visitas in loco), consultas públicas amplas e uma elaboração detalhada de pelo menos quatro anos. Infelizmente, como partimos de um patamar de conectividade muito mais baixo, não seria possível prometer os níveis de conectividade dos países desenvolvidos em apenas quatro anos. O importante é ter em conta na execução do plano que o investimento em espinhas dorsais deve pensar nas demandas de longo prazo (ser à prova de futuro, no dizer de Nelson Simões, da Rede Nacional de Ensino e Pesquisa – RNP) de modo a sustentar velocidades na ponta muito maiores.

De fato, estudo recente da Cisco mostra que o tráfego global total na Internet deve crescer quatro vezes de 2010 a 2014, e mais de 90% desse tráfego mundial em 2014 será de vídeo7 – o que requer velocidades na ponta de no mínimo 3 Mb/s plenos para “streaming” ininterrupto de vídeo de alta definição compactada (H.264/720p, a mesma tecnologia de compressão utilizada pelo Sistema Brasileiro de TV Digital, SBTVD). Esse tipo de demanda cada vez mais dominante na rede exige que se leve a sério tanto as velocidades efetivas como a qualidade do serviço – medido por diversos parâmetros, como variações de tempo no fluxo de dados (latência), regularidade no fluxo de datagramas etc. Um estudo recente que procura quantificar a qualidade de serviço adequada para cada etapa do desenvolvimento da Internet a ser oferecida nas conexões permanentes ao usuário final (denominado “broadband quality score”, BQS), constatou que já hoje a banda adequada para uso pleno dos principais serviços na rede deveria ser de 3,75 Mb/s de descida (download) e 1 Mb/s de subida (upload) com uma latência máxima de 95 milissegundos – revelando que hoje a maioria dos provedores de “banda larga” no mundo estão longe de garantir uma experiência plena do usuário final no uso desses serviços. Para 2014 o estudo prevê a necessidade de bandas de descida e subida respectivamente de 11,25 Mb/s e 5 Mb/s, com latência máxima de 60 ms.8 Dados como esses só enfatizam a importância e urgência de uma política pública agressiva para universalizar a conectividade plena no país, já que a distância do Brasil em relação às outras nove maiores economias é muito grande neste campo e tende a aumentar se medidas efetivas não forem tomadas. Todos os planos nacionais de conectividade plena levam em conta dois objetivos centrais: a competitividade do país no cenário mundial, tendo em vista a óbvia e crescente dependência das economias em relação às tecnologias digitais de informação e comunicação, em especial a Internet; e a ampliação das oportunidades na vida econômica para toda a população.

“Conectividade plena nas bordas!” é uma reivindicação fundamental e cada vez mais urgente.

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1. Sigla do inglês Universal Service Obligation.

2. Ver http://www.bmwi.de/BMWi/Navigation/Servicepublikationendid=290012.html

3. Ver http://www.broadband.gov/plan

4. Ver http://data.dbcde.gov.au/nbn/NBN-Implementation-Study-complete-report.pdf

5. Sigla do inglês Purchasing Power Parity [paridade do poder de compra].

6. Ver, por exemplo, os artigos em 5ª Pesquisa sobre o Uso das Tecnologias da Informação e da Comunicação no Brasil, CETIC.br, maio de 2010, em http://www.cetic.br/tic/2009/index.htm

7. Ver http://www.eweek.com/c/a/Enterprise-Networking/Cisco-Internet-Traffic-to...

8. Universidade de Oxford e Universidade de Oviedo, Broadband Quality Score - A global study of broadband quality, setembro de 2009.

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