A Big Tech está liderando a nova corrida espacial. Eis por que isso é um problema(*)

Steve Song e Peter Bloom (**)

Data da publicação: 

Setembro 2022

(*) Sobre este texto1
(**) Steve Song é pesquisador e consultor de tecnologias de rádio digital2.
Peter Bloom é coordenador geral da Rhizomatica, México3.

A pandemia de coronavírus reforçou a necessidade urgente de uma conexão de Internet estável e confiável em todos os domicílios. Pessoas em todo o mundo têm buscado meios de permanecerem protegidas enquanto trabalham, sigam tendo acesso à educação e participem da vida em sociedade. No entanto, o acesso permanente com qualidade a preços acessíveis à Internet está longe de ser universalizado; na verdade, quase metade da população mundial ainda não tem acesso pleno à Internet, apesar dos esforços sustentados de governos, setor privado e iniciativas da sociedade civil4.

Uma proposta recente para conectividade ampla vem das constelações de satélites de baixa órbita (LEO, de “low Earth orbit”)5. Os investidores desses novos empreendimentos afirmam que esses satélites terão capacidade de fornecer banda larga de alta velocidade em qualquer lugar do planeta. Essa modalidade requer o lançamento de milhares de satélites para uma cobertura razoável.

A perspectiva de uma malha global de satélites de comunicação de banda larga atraiu o interesse e o investimento de bilionários, desde Bill Gates na década de 19906 até Elon Musk e Jeff Bezos hoje. Existem pelo menos quatro grandes iniciativas LEO dos EUA, Canadá e Europa, incluindo Starlink (SpaceX), Project Kuiper (Amazon), OneWeb e Telesat. A China anunciou pelo menos três constelações de LEO e a Rússia uma7 . O tamanho, alcance e finalidades desses projetos são muito amplos e ao mesmo tempo preocupantes. Para colocar as ambições atuais dos satélites LEO em contexto: o número total atual de satélites de qualquer tipo orbitando a Terra é pouco mais de 5,4008. A Starlink, que já tem mais de três mil satélites em órbita, solicitou ao regulador de comunicações dos EUA permissão para lançar um total de 12 mil satélites. A OneWeb solicitou permissão para lançar 48 mil satélites9.

Os problemas

Embora o objetivo dessas empresas de garantir banda larga com baixa latência em qualquer lugar seja louvável, a tecnologia e a abordagem da conectividade não estão isentas de preocupações. A história recente, especialmente o desenvolvimento da própria Internet, mostrou que simplesmente ter a capacidade de construir algo não necessariamente o torna uma boa ideia. O espírito do Vale do Silício de "agir rápido e quebrar as coisas", talvez válido no desenvolvimento de pequenas aplicações, torna-se irresponsável quando as consequências do fracasso podem ser catastróficas e irreversíveis.

As críticas às constelações de LEO até o momento concentraram-se em preocupações práticas em torno de uma variedade de questões, incluindo: a viabilidade econômica das constelações10, a oclusão do céu noturno interferindo na astronomia11, a interferência de rádio entre diferentes constelações12 e a potencial reação em cadeia de colisões de um único erro na trajetória de um satélite13, transformando a baixa órbita em um ferro-velho inacessível de detritos, e ainda colocando em risco estações espaciais e serviços como o Hubble.

Além disso, as constelações de LEO têm implicações mais profundas e de longo prazo que ainda não chegaram ao debate público convencional. Por um lado, essas constelações fazem parte de um processo maior no qual a exploração espacial está sendo redefinida e reformulada em termos militares e comerciais.

Na Terra, as constelações de LEO levantam preocupações importantes sobre o potencial de maior entrincheiramento de um oligopólio global de fornecimento de acesso à Internet que aumenta a desigualdade e fragiliza a cidadania. E persistem nessas novas modalidades de serviços problemas comuns à conectividade via satélite em relação à segurança e privacidade das entidades e pessoas usuárias. Questões como compartilhamento de números IP nas estações terrestres (CGN ou similar14), criptografia no trânsito dos dados, bem como por onde passam esses dados, são muito relevantes.

A corrida pelo espaço

Nas últimas sete décadas, à medida que nossa capacidade de explorar além do nosso planeta evoluiu, os interesses de segurança nacional no espaço alinharam-se com os comerciais a ponto de serem quase indistinguíveis hoje. Nos Estados Unidos, empresas privadas de lançamentos espaciais como SpaceX e United Launch Alliance15 são as principais receptoras de contratos governamentais16 e agora fornecem a maior parte da capacidade de lançamento dos EUA17 para missões científicas e militares. Embora os laços estreitos entre as indústrias de defesa e aeroespacial não sejam novidade, estamos em uma fase decididamente nova desse relacionamento devido ao avanço tecnológico, novas prioridades políticas e o envolvimento e ascensão de atores privados.

À medida que a capacidade de lançamento comercial aumenta e as tecnologias de exploração espacial avançam, os acordos de décadas sobre como tratamos o espaço e reconhecemos nosso sistema solar como um bem comum para o benefício de toda a humanidade estão começando a se desfazer. Um exemplo claro disso é a recente "Ordem Executiva para Incentivar o Apoio Internacional para a Recuperação e Uso de Recursos Espaciais" da Casa Branca18, que enfatiza que "os Estados Unidos não veem o espaço sideral como um 'bem comum global'" e refere-se ao Tratado da Lua19 como "uma tentativa fracassada de restringir a livre iniciativa".

É necessário entender melhor os laços profundos das empresas LEO com os projetos hegemônicos dos governos nacionais no espaço próximo. Recentemente, em troca de US$ 28 milhões, a Starlink forneceu os serviços de seus satélites para demonstrações de tiro ao vivo com a Força Aérea dos EUA para testar seu Sistema Avançado de Gerenciamento de Batalha e estabelecer as bases para uma Internet das Coisas militar20. Falando após a última demonstração de tiro ao vivo, William Roper, chefe de aquisição da Força Aérea dos EUA, opinou que "os militares precisam estar prontos para desempenhar um papel estratégico porque precisamos de comunicações em muitas áreas do mundo em que não há fornecedores comerciais. . . podemos ser o caso de estabilidade para empresas como a SpaceX e outras que desejam vender comunicações em todo o mundo."

As conexões da SpaceX com o complexo industrial militar ficaram claras em comentários da presidente da SpaceX, Gwynne Shotwell, em 2018, que afirmou que sua empresa estaria disposta a lançar uma arma espacial para proteger os EUA21, em violação das normas espaciais estabelecidas. Em 2020 a SpaceX assinou um contrato com o Pentágono para desenvolver em conjunto um foguete que pode entregar até 80 toneladas de carga e armamento em qualquer lugar do mundo em apenas uma hora22.

A Internet também, desde o seu início até hoje, tem provado ser uma ferramenta útil para perseguir objetivos militares e de segurança. Destes, a vigilância permanece no centro do modelo de negócios altamente lucrativo do Vale do Silício de manipular nossa atenção e preferências em prol do lucro23. Esse modelo de negócios facilita os projetos de bilionários obcecados pelo espaço, como Jeff Bezos, que não fazem segredo de que seu objetivo final é a colonização humana de outros planetas em nosso sistema solar24. Em linhas gerais, com apoio material e econômico dos contribuintes por meio de gastos com defesa, os lucros da colonização de nossos dados estão sendo investidos na militarização, privatização e colonização do espaço.

Telecomunicações: impulsionando a desigualdade ou capacitando os cidadãos?

O setor de telecomunicações sempre foi um campo de batalha pela regulamentação. Embora os primeiros dias da Internet aparentemente estivessem repletos de competição e diversidade, poder e controle acabaram concentrando-se com o crescimento de empresas gigantes da Internet que agora dominam nossa vida online. As consequências da expansão desregulada da globalização e da desigualdade alimentada pela tecnologia agora podem ser vistas em quase todos os aspectos da vida.

A tecnologia digital desempenha um papel crítico na ampliação da desigualdade, evidenciado a necessidade de reformular a forma como abordamos o desenvolvimento da tecnologia de rede25. Alguns governos e grupos civis entendem a conexão entre mobilidade econômica e o desenvolvimento de habilidades tecnológicas.

Um bom exemplo disso vem da Broadband for the Rural North (B4RN)26, uma cooperativa no norte da Inglaterra, que fornece capacidade de fibra óptica de um gigabit por segundo para residências em uma região considerada economicamente inviável pelas operadoras comerciais de telecomunicações. A capacidade da B4RN de construir e sustentar um serviço de Internet acessível em velocidades muitas vezes superiores às ofertas comerciais é baseada no investimento que eles fazem tanto no envolvimento da comunidade quanto no desenvolvimento da capacidade local. Compare isso com a perspectiva de um serviço de banda larga de uma constelação LEO, na qual o papel do cidadão é apenas o de consumidor. Também vale a pena notar que os lucros da B4RN são reinvestidos localmente, enquanto as receitas das constelações LEO são transferidas para o país-sede da operadora do serviço.

O fracasso em investir em alternativas que construam capacidade local também se repete em nível nacional. As constelações LEO têm o potencial de abstrair ainda mais o serviço de Internet a um nível supranacional de uma maneira que enfraquece não apenas as pessoas, mas os próprios países em termos de experiência e infraestrutura domésticas. Os custos de investimento e implantação para constelações LEO são tão altos e, em muitos casos, tão vinculados a investimentos e subsídios nacionais/militares, que apenas um pequeno punhado de corporações/países será capaz de possuir e gerenciar sua própria constelação. Isso provavelmente abrirá uma nova frente na disputa em curso pelos blocos de poder geopolítico sobre o futuro da Internet27.

Além disso, está longe de ser claro que as constelações LEO tenham a capacidade ou o modelo econômico para cumprir suas promessas de fornecer conectividade acessível para os não atendidos na maioria das regiões do planeta -- lembrando que quase 40% da população mundial que permanece desconectada da Internet é a mais desfavorecida economicamente28. Como tal, a maioria das pessoas não será consumidora direta de serviços LEO, mas precisará confiar em uma infraestrutura compartilhada usando LEO como backhaul – um cenário que já existe com serviços convencionais de satélites geoestacionários. Outra preocupação é que as constelações LEO possam, em última análise, criar um desincentivo ao investimento em conectividade rural, com base na suposição de provedores de serviços e governos de que as constelações LEO cobrirão essa lacuna.

É preocupante que empresas como Amazon e Google (a terceira maior acionista da SpaceX)29, que já detêm enorme poder e influência sobre a sociedade, estejam competindo para expandir seu domínio tornando-se provedoras globais de serviços de Internet com o apoio dos contribuintes por meio de subsídios e verbas militares30. Com o controle de praticamente todas as camadas da pilha de comunicação, regular ou mesmo monitorar os dados que elas coletam e como eles são usados para obter vantagem competitiva em outras áreas de seus negócios representará um grande desafio.

Recuperando o espírito de cooperação

Na época de seu surgimento, tanto a exploração espacial quanto a Internet serviram como faróis de esperança e de potencial transcendência para a humanidade – de imaginação e recursos compartilhados e de cooperação no desenvolvimento humano. Em ambos os casos, essa esperança foi esmaecida pela busca de lucro e poder geopolítico. Se quisermos recuperar um senso de propósito compartilhado como espécie, a questão de "quem pode colocar seus satélites em órbita terrestre baixa?" é mais importante do que imaginamos. O espaço é para todos ou apenas para algumas grandes corporações e superpotências globais? Esta é a pergunta que fazemos quando perguntamos quem consegue posicionar seus satélites em órbita.

Há uma oportunidade de retornar ao espírito de internacionalismo que infundiu os primeiros dias da exploração espacial, em que o espaço era mantido como um recurso compartilhado a ser protegido e resguardado da exploração. Da mesma forma, aqui na Terra, vemos esforços bem-sucedidos para gerenciar a infraestrutura da Internet como um bem comum, em contraste com o modelo de capitalismo de vigilância do Vale do Silício.

Reconhecer que o empoderamento e as iniciativas individual e coletiva são tão importantes quanto a própria infraestrutura é a chave para uma Internet mais igualitária. As redes de satélite LEO podem fornecer conectividade (embora muitas dúvidas permaneçam), mas são menos propensas a capacitar as pessoas e nos levar a um mundo mais justo. O desenvolvimento de uma Internet saudável que realmente beneficie a humanidade envolve não apenas o resultado final do acesso acessível, mas também o processo pelo qual as pessoas obtêm esse acesso.

 

1. Este texto de Steve Song e Peter Bloom. originalmente escrito em 2020, foi atualizado pela editoria da poliTICs. Originalmente publicado em https://www.salon.com/2020/11/14/big-tech-is-leading-the-new-space-race-...

4. Ver, por exemplo, as estatísticas da Telesat: https://www.telesat.com/universal-connectivity/

5. Todas as órbitas abaixo de aproximadamente 2 mil km são consideradas LEO. Os novos serviços propostos estão em órbitas em torno de 600 km de altitude (abaixo do “cinturão” de Van Allen na latitude equatorial). Satélites geoestacionários de comunicação de dados (como o TelebraSat e os de serviços televisivos), bem como os de geolocalização (GPS, Galileu, Glonass e Beidu) estão a mais de 15 mil km. Serviços de comunicação em LEO têm latência muito menor por estarem 20 a 25 vezes mais próximos da Terra. O posicionamento orbital dos vários serviços é ilustrado por este mapa dinâmico da Wikimedia: https://upload.wikimedia.org/wikipedia/commons/b/b4/Comparison_satellite...

Categoria: 

 

Endereço

Rua Sorocaba 219
Botafogo
Rio de Janeiro . RJ
22271 110

 

Creative Commons

O conteúdo original deste site está sob uma licença Creative Commons Attribution-ShareAlike 4.0 International (CC BY-SA 4.0) https://creativecommons.org/licenses/by-sa/4.0/. Os conteúdos de terceiros, atribuídos a outras fontes, seguem as licenças dos sites originais, informados nas publicações específicas.