Europa trata direitos autorais com seriedade*

Richard Bennett, consultor internacional em tecnologia da informação, coinventor do padrão Ethernet e do protocolo Wi-Fi MAC

Data da publicação: 

Fev/Mai de 2019

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Os legisladores europeus cometeram graves erros2 na regulação da Internet,3 mas em setembro de 2018 aprovaram uma lei banindo a distribuição de conteúdo proprietário sem o devido pagamento. O projeto de lei – Artigo 13 da Diretiva sobre Direito Autoral da União Europeia4 – requer que empresas como Google e Youtube garantam as licenças a conteúdos protegidos por direitos autorais que elas distribuem.

Ele também impede as plataformas de distribuírem conteúdo proprietário5 que os autores tenham escolhido não licenciar a essas plataformas, mesmo se o conteúdo tiver sido enviado por usuários. Como as plataformas escolherão identificar conteúdo ficará a critério delas, embora ainda estejam circulando reportagens jornalísticas,6 publicações de blogs7 e declarações dos defensores da lei8 exigindo o uso de filtros de upload automatizados.

Algumas empresas tentaram usar “cyberturfing”9 para angariar oposição, mas os legisladores estão cientes disso.10 Vários “influenciadores” da Internet, “ex-influenciadores”11 e “semi-influenciadores”12 ambém tiveram peso, mas não conseguiram oferecer um plano mais realista.

Youtube domina o mercado de vídeos de música

O Youtube é o alvo principal, por boas razões. O Youtube é complementar à pesquisa do buscador Google, especialmente para vídeos musicais. Procure por qualquer artista + vídeo musical e sua primeira tela de resultados com vários sucessos vai para o Youtube.

Isso acontece com Taylor Swift, Eminem, Beyoncé, Adele, Paul McCartney e provavelmente todos os outros. Depois que o buscador Google direciona você para o Youtube e você assiste ao vídeo, a empresa coleta a receita de anúncios, e uma pequena parte é dividida com o artista.

De acordo com “Information is Beautiful”,13 uma execução no Youtube gera US$ 0,0006 para o artista, ou 6/100s de um centavo. A Apple Music, por outro lado, paga US$ 0,0064, dez vezes mais.

O Youtube domina esse mercado, com 46% de todo o tempo de streaming on-line.14 Incríveis 85% dos usuários do Youtube15 acessam vídeos de música, a maioria dos quais (76%) são de artistas que eles já conhecem.

Os aliados do Youtube dizem que essa Diretiva o ajuda

É aqui que as coisas ficam complicadas. Membro da EFF de longa data, Cory Doctorow alega no post de blog intitulado “Como a UE forçará todos os artistas a usar o Youtube, para sempre”16 que o Artigo 13 vai tirar do mercado todos os outros distribuidores de música online:

A Google pode e vai construir ferramentas para cumprir o Artigo 13. Mas ninguém que possa competir com a Google – em particular empresas europeias que tenham interesse em alcançar e exceder os pagamentos que os artistas recebem da Google – jamais será capaz de lançar seu serviço concorrente. Uma coisa é tentar concorrer com a hospedagem e as recomendações de vídeos do Youtube. Outra coisa é conseguir investir as centenas de milhões que o Youtube gastará para entrar em conformidade com o Artigo 13.

O Artigo 13 é uma péssima ideia e a preferência número um da Google é, sem dúvida, que ele não seja sancionado – eles preferem manter o dinheiro que gastariam, e também entendem de tecnologia e, assim, compreendem quão estúpida é essa ideia –, mas a segunda preferência é de que o Artigo 13 seja sancionado e assegure que eles nunca tenham que se preocupar em ser vencidos pela concorrência.

[O Youtube não concorda, como veremos.]

Mas não é provável

Isso é improvável. Em primeiro lugar, as pequenas e médias empresas estão isentas. Esta Diretiva aplica-se apenas aos principais sites cujos nomes você conhece bem: Spotify, Pandora, Apple Music e similares.

Em segundo lugar, embora os detalhes das exigências na aplicação da lei ainda não tenham sido escritos, não é difícil imaginar métodos de conformidade que não requeiram muita tecnologia. Limitar uploads para pessoas que são usuários registrados com nomes e endereços reais e um acordo para não violar os direitos autorais pode ser suficiente, especialmente se os infratores reincidentes forem banidos.

Em terceiro lugar, provavelmente surgirão serviços de terceiros que cobrarão um valor para verificar conformidade com a Diretiva por usuários anônimos. Isso pode complicar as coisas para as pessoas que desejam compartilhar vídeos com pequenos grupos de amigos e familiares, mas existem maneiras de compartilhar com essas pessoas sem violar direitos autorais.

O Youtube definitivamente não gosta do Artigo 13

O Youtube já entende que os sistemas de distribuição de vídeos sofrerão abusos pelos piratas digitais. Ele desenvolveu dois sistemas para resolver de imediato esse problema. Como o diretor de negócios do Youtube, Robert Kyncl, explica:17

Criadores e artistas construíram empresas com base na transparência e foram apoiados por nossas sofisticadas ferramentas de gerenciamento de direitos autorais,18 incluindo o Content ID19 e a recém-lançada Ferramenta de Correspondência de Direitos Autorais,20 que gerencia o reenvio do conteúdo dos criadores. Os detentores de direitos autorais têm controle sobre seu conteúdo: eles podem usar nossas ferramentas para bloquear ou remover suas obras ou podem mantê-las no Youtube e ganhar receita com publicidade.

O Content ID faz uma correspondência de padrões de novos envios com uma base de dados de títulos populares, e a Ferramenta de Correspondência de Direitos Autorais impede o novo upload de conteúdo removido recentemente. O Youtube foi o primeiro a desenvolver essas ferramentas, mas a tecnologia agora é bem conhecida, assim como os meios de resolver correspondências falsas. Nada disso abre novos caminhos.

Mas o Youtube não estaria reclamando da Diretiva – e pagando defensores para se opor a ela21 – se realmente fosse do interesse da Google. O Youtube teve de arcar com altos custos de conformidade com direitos autorais porque era um grande ofensor antes de se dar ao trabalho de resolver um problema que possivelmente começou com as ações de um de seus fundadores.22

Negócios envolvem bastante trabalho

O meio técnico de identificar obras protegidas por direitos autorais sem qualquer contexto pode ser desafiador: é preciso inteligência artificial para determinar, em um curto espaço de tempo, se uma série arbitrária de bits codifica ou não um trabalho protegido por direitos autorais. Mas os serviços computacionais resolvem problemas complicados o tempo todo, como dirigir carros em meio a tráfego pesado na chuva.

A Google/Youtube, a Facebook, a Amazon e a Netflix criptografam todo o tráfego da Internet, uma tarefa dispendiosa e de grande intensidade computacional. E elas fazem isso simplesmente para tornar a atividade do consumidor invisível para os concorrentes, a fim de proteger a receita de publicidade. Proteger o envio de vídeos é provavelmente muito menos difícil.

Mas há boas razões para fazer o que a Europa quer fazer com o Artigo 13. Por muito tempo, muitas plataformas de Internet têm construído empresas gigantescas às custas de criadores não remunerados e mal remunerados. As empresas que não conseguem pagar valores razoáveis pelos insumos não merecem realmente existir e a Internet tem uma grande dívida para com os criadores.

Os direitos autorais são de interesse do público no longo prazo

Os direitos autorais não apenas garantem que os artistas sejam pagos pelo seu trabalho conforme são consumidos, mas também garantem que os distribuidores tenham negócios viáveis no longo prazo. E garantem que a cultura continue a desenvolver-se, o que é do interesse de todos. Esses direitos têm sido aplicados de uma forma ou de outra desde o século VI,23 e ainda não destruíram a civilização. Na realidade, o primeiro livro com direitos autorais era uma tradução latina do Livro dos Salmos.24

A EFF alega que o Artigo 13 é um “evento a nível de extinção para a Internet”.25 Por favor, já não tivemos o suficiente desse tipo de histeria? A Internet continuará a ser um sistema vital e vibrante de comunicação apesar de – e talvez por causa de – reformas como o Artigo 13. Os EUA deveriam considerar seriamente a harmonização de sua lei de direitos autorais com a da União Europeia, depois que todos os detalhes forem divulgados. Enquanto isso, sinta-se à vontade para navegar pela Internet.

Adendo: texto da lei

Aqui está o que o diz o controverso artigo:26

1. Sem prejuízo do disposto no artigo 3.º, n.ºs 1 e 2, da Diretiva 2001/29/CE, os prestadores de serviços de partilha de conteúdos em linha efetuam um ato de comunicação ao público. Portanto, devem celebrar acordos de licenciamento justos e adequados com os titulares de direitos

2. Os acordos de licenciamento celebrados por prestadores de serviços de partilha de conteúdos em linha com titulares de direitos relativamente a atos de comunicação a que se refere o n.º 1 devem abranger a responsabilidade por obras carregadas pelos utilizadores desses serviços de partilha de conteúdos em linha, em conformidade com os termos e as condições estabelecidos no acordo de licenciamento, desde que esses utilizadores não atuem para fins comerciais.

2-A. Se os titulares de direitos não pretenderem celebrar acordos de licenciamento, os Estados-Membros devem prever a cooperação de boa-fé entre os prestadores de serviços de partilha de conteúdos em linha e os titulares de direitos, por forma a assegurar que as obras ou outro material protegido não estejam disponíveis nos seus serviços. A cooperação entre os prestadores de serviços de conteúdos em linha e os titulares de direitos não deve levar a que se impeça a disponibilização de obras ou outro material protegido que não violem os direitos de autor, incluindo as obras e o material protegido abrangidos por uma exceção ou limitação aos direitos de autor.

2-B. Os Estados-Membros devem assegurar que os prestadores de serviços de partilha de conteúdos em linha a que se refere o n.º 1 estabeleçam mecanismos de reclamação e recurso céleres e eficazes para os utilizadores, caso a cooperação a que refere o n.º 2-A conduza à eliminação injustificada dos seus conteúdos. Qualquer queixa apresentada ao abrigo destes mecanismos deve ser processada sem demora injustificada e submetida a controlo humano. Os titulares de direitos devem justificar razoavelmente as suas decisões para evitar a rejeição arbitrária das queixas. Além disso, em conformidade com as Diretivas 95/46/CE e 2002/58/CE e o Regulamento geral sobre a proteção de dados, a cooperação não deve levar a qualquer identificação dos utilizadores individuais nem ao tratamento dos seus dados pessoais. Os Estados-Membros devem também assegurar que os utilizadores tenham acesso a uma instância independente para a resolução de litígios, bem como a um tribunal ou a outra autoridade judicial pertinente para reivindicar a utilização de uma exceção ou limitação no que se refere às regras em matéria de direitos de autor.

3. A partir de [data de entrada em vigor da presente diretiva], a Comissão e os Estados-Membros devem organizar diálogos entre as partes interessadas com vista a harmonizar e definir melhores práticas e emitir orientações para assegurar o funcionamento dos acordos de licenciamento e a cooperação entre os prestadores de serviços de partilha de conteúdos em linha e os titulares de direitos para a utilização das suas obras ou outro material na aceção da presente diretiva. Na definição das melhores práticas devem ser tidos em especial consideração os direitos fundamentais e a utilização de exceções e limitações e deve-se garantir que os encargos para as PME se mantêm adequados e que se evita o bloqueio automático dos conteúdos.

A votação no Parlamento Europeu foi de 438 votos a favor e 226 contra, com 39 abstenções.
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1 Tradução adaptada do original em inglês em http://hightechforum.org/europe-gets-serious-about-copyright

9 “Cyberturfing” é a prática de encobrir ações organizadas de marketing em plataforma com a aparência de espontâneas, como campanhas de usuários que têm por trás delas empresas e agentes do estado, a fim de garantir benefícios comerciais ou políticos.

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